Revi Oblivion (Joseph Kosinski, 2013), filme que comentei brevemente o ano passado. Se ainda existe um preconceito que separa os filmes “sérios” daqueles “de entretenimento”, este exemplar da última categoria presta sua contribuição para desfazer essa fronteira. Já se passaram décadas desde que teóricos do porte de um Umberto Eco dedicaram ensaios a esse tipo de obras não nobres, mostrando que sua estrutura aparentemente simples contém elementos da arte “elevada”. É o caso deste filme, em que estão presentes alguns temas clássicos da literatura: o que constitui o humano, o duplo, o amor, a falta e o sacrifício. Sem esquecer, é claro, que a ficção científica, que trata do futuro, já tem um passado importante na história do cinema, com obras como Metrópolis (Fritz Lang, 1927) e 2001, Odisseia Espacial (Stanley Kubrick, 1968), o que deveria bastar para limpar o seu nome.
Baseado numa história do próprio diretor, o roteiro – muito bem elaborado – junta com precisão os fios de uma narrativa onde os fãs de f.c. reconhecerão citações sutis de obras do gênero, como Blade Runner (Ridley Scott, 1982), O Planeta dos Macacos (na sua primeira versão, de Franklin Shaffner, 1968) e o supracitado 2001. A belíssima fotografia em tons pasteis descortina amplas paisagens desertas, planícies desprovidas de vida onde os escombros da civilização se fazem presentes não como ruínas, mas enquanto restos ambíguos que mimetizam a natureza. Esse mundo desinfectado do humano fornece o contraste com o nicho de alta tecnologia em que vivem os personagens. Mas sem exagero: Oblivion é um dos poucos filmes na safra recente em que os efeitos especiais fazem parte do enredo, em vez de constituírem um fim em si mesmos.
De que trata esse enredo? Como já disse em outro texto, do esquecimento, é claro, bem como de sua contrapartida, a rememoração. Jack Harper (Tom Cruise) teve suas memórias apagadas para melhor executar a sua missão no planeta desabitado e ajudar a salvar o que resta da humanidade. Mas ele é atormentado por sonhos e lembranças recorrentes de uma época anterior ao seu nascimento. Sua parceira e esposa, Victoria (Andrea Riseborough), como uma Jocasta do futuro, recomenda que ele foque no presente e não dê atenção a essa história de memórias. Ele, porém, não se conforma, porque pressente que no passado reside o segredo da sua existência.
A tese de que a memória constitui o humano não é uma invenção original de Oblivion – lembremos de Blade Runner, no qual a hybris capitalista consiste não em criar simulacros do humano, mas em prover a sua mercadoria de memórias artificiais. Não importa se essas memórias são possíveis ou não. Há toda uma raça de críticos de ficção científica (que entendem muito de ciência e zero de ficção) dedicada a discutir se os prodígios descritos nessas obras podem ser realizados ou não – discussão tão inútil quando ridícula. A obra de ficção cria a sua realidade e não reproduz uma supostamente existente.
Já em Oblivion não se trata do capitalismo (extinto, como tudo mais), nem de falsas memórias, mas das verdadeiras. Porém não no sentido habitual do termo – a verdade aqui não diz respeito ao factual, mas à verdade do sujeito. Ela evoca o objeto perdido no sentido mais radical e propriamente psicanalítico: o que é perdido sem que jamais tenha sido alcançado pelo sujeito – e mais não se pode dizer sem revelar a história.
Escalar a atriz e ex-modelo ucraniana Olga Kurylenko para interpretar esse objeto é uma escolha mais do que apropriada – sua beleza, que domina todas as cenas em que ela aparece, merece ser justamente qualificada como utópica, na acepção de utopia fornecida por Quevedo (apud Borges): “voz grega que significa não existe tal lugar”. Ou, numa definição contemporânea: lugar ideal para se viver num mundo pós-apocalíptico. Desculpem, eu divago.
Voltando ao assunto: pode-se criticar a premissa açucarada de que se encontra o objeto do amor. Afinal, Lacan ensinou há tempos que é verdade que ao amante falta algo e que o amado possui algo – a ilusão é crer que aquilo que o segundo possui é o mesmo que falta ao primeiro. A sutileza de Oblivion, contudo, vai bem mais além do clichê hollywoodiano: não é simplesmente o sujeito que encontra o objeto que lhe falta, mas é o objeto que ao existir como faltante vai constituir um sujeito ali onde até então não havia um.
Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, editor de Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012).