Esqueçam o maniqueísmo do roteiro de Elysium (Neill Blomkamp, 2013) , que parece ter sido escrito por Nicolás Maduro: em num futuro relativamente próximo, os “burguesitos” moram em um paraíso espacial, enquanto “el pueblo” sobrevive como pode na Terra favelizada. Até o idioma é hierarquizado: a secretária de Estado dos cidadãos privilegiados, interpretada por uma Jodie Foster fálica até a alma, fala francês (que na mitologia norte-americana é uma língua de gente metida a besta), enquanto nossa Alice Braga é obrigada a mesclar seu impecável inglês com frases em espanhol (segundo essa mesma mitologia, uma mulher morena tem que ser “hispânica”).
Esqueçam por um instante a excelente atuação de Wagner Moura no papel de um hacker doidão, mostrando (como se fosse preciso) que não nasceu para ficar conhecido como o Capitão Nascimento. O astro do filme é Matt Damon, na pele de um norte-americano “do Bem”, que luta para salvar a própria vida e de quebra a dos desfavorecidos. Para isso, porém, ele tem que implantar cirurgicamente um chip no córtex e um exoesqueleto mecânico.
O mito do cyborg povoa há muito as fantasias dos autores de ficção-científica. A novidade, nas últimas décadas, é encontrá-lo nas fantasias dos cientistas que, estes sim, têm o poder de realizá-las (ainda que não totalmente). Porém, mais esquisito ainda é observar a euforia com que alguns acadêmicos comemoram tais avanços da ciência. Referindo-se a esses autores, Philip K. Dick – escritor de f.c. que é frequentemente citado como o autor que descreveu de forma mais elaborada os seres artificiais – já dizia numa linguagem curta e grossa que achava uma maluquice um ser humano almejar transformar-se em máquina. Não que essa objeção detenha nossos universitários, que “viajam” em especulações acerca do “transumano” (termo pernóstico para a natureza de tais seres híbridos entre o humano e a máquina). O argumento mais comum – utilizado, entre outros, pelo histriônico Zizek – é que, na ausência de uma natureza humana, não haveria fundamento teórico para criticar as tentativas de criar o cyborg.
“Por meio de um curioso sofisma, a caducidade da noção de natureza do homem é aqui utilizada para justificar a apologia do “transumano”, da superação da espécie humana. Uma vez que não se poderia definir de forma universal o que vem a ser o humano, todas as intervenções sobre o homem, inclusive – e principalmente – aquelas que visariam sua transformação num artefato mecânico, num cyborg, seriam justificadas. Futuro totalitário? De modo algum.” (Teixeira, M. “Uma ética do objeto”, In: Vicissitudes do Objeto, 2005)
No filme, o cyborg está do lado do Bem, dos pobres e explorados (como não podia deixar de ser). Talvez seja uma maneira de aceitarmos a sua desfiguração, a sua reificação literal, uma vez que ele se torna uma espécie de armazenador de memória feito de carne. Onde Bill Gates estava que não enxergou a chance de patrocinar a produção desse filme?
Marcus do Rio Teixeira – psicanalista, editor de Ágalma, autor de O Espectador Inocente – Psicanálise, Cinema, Literatura e Música (2012).