NINFOMANÍACA

Cada um tem o seu defeito: o de Lars Von Trier é se levar demasiado a sério. Tomemos como exemplo o filme mais recente que ele cometeu, Ninfomaníaca. Temos ali Charlotte Gainsbourg, mostrando que não herdou do seu pai apenas o sobrenome ilustre e o nariz horroroso. Infelizmente, por melhor atriz que seja, ela não pode fazer milagres e salvar as suas falas deploráveis. O roteiro é tão caricato que nos deixa na dúvida se o diretor estaria zombando de nós, espectadores. As cenas da infância da sua personagem com o pai são de um sentimentalismo tão piegas que só fazem sentido como gozação.

Quanto à sua jornada autodegradante, afinal, o que ele pretende com aquilo? Chocar? Mas será que alguém, além dos espectadores das novelas da Globo, ainda se choca com o sexo no século 21? Os comentários elogiosos que tive a oportunidade de ler associam insistentemente o sexo ao vazio, à angústia, etc. Não fica claro se isso pretende ser uma descrição, um comentário crítico ou uma sentença de cunho moralista. Mas é patético constatar que depois de a cultura ocidental haver superado o cristianismo, depois do surgimento da Psicanálise, da liberação sexual, etc, a grande novidade nesse campo seja um filme que associa o sexo ao vazio e ao sofrimento. O que é isso? Um sermão pós-moderno?

Com um tema como esse, Trier teria, pelo menos, duas opções: na primeira, eliminaria as cenas de sexo e faria um filme com personagens angustiadas comentando o vazio da vida, no estilo chatíssimo de Bergman. Na segunda, enxugaria ao máximo o roteiro, cortaria as reflexões pretensamente profundas e faria um filme erótico memorável sobre as aventuras de uma maluquete neosadiana. Afinal, atriz para isso ele tem, na pessoa de Stacy Martin, que com seu corpo esguio de seios pequenos e seu rosto comprido de olhos claros lembra em tudo a sensualidade de Jane Birkin, mãe de Charlotte.

Mas eu divago. Voltando ao filme, uma derradeira opção seria fazer com que a personagem, no final, revelasse ao seu dedicado ouvinte (e não venham me dizer que ele ocupa o lugar do analista, por favor) que ela inventou aquela história toda. Mas, como disse no início, o diretor se leva muito a sério para ter senso de humor. Talvez o defeito dos seus admiradores seja acreditar nele.

*

Publiquei este texto aqui no Face em fevereiro, logo após a estreia do primeiro filme. Recentemente tive a oportunidade de ler o artigo publicado por Contardo Calligaris na Folha de S. Paulo em 20/3, onde ele afirma que “Ninfomaníaca 1 e 2 é um dos filmes mais tocantes e notáveis que eu vi na última década”. O autor lista as razões para sua apreciação positiva, fazendo referência ao conceito lacaniano de gozo e contrapondo a experiência da personagem com a superficialidade dos nossos dias, em que “[…] a maioria prefere fugir do sexo pela zombaria ou pelo esculacho.” Quer dizer que estamos condenados a ter que escolher entre a mentalidade calhorda dos participantes do Big Brother Brasil e o estilo “I can’t get no satisfaction” da heroína de Trier? A banalidade versus o gozo que corrói o sujeito? Tenho a impressão de que existem mais opções entre esses dois extremos do que sonha a nossa vã psicologia.

Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, diretor da editora Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012) e de Vicissitudes do Objeto (2005), entre outros.

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