Marcus do Rio Teixeira
Pode parecer estranho que um psicanalista escolha falar sobre uma obra de Vladimir Nabokov. Afinal, esse escritor russo, naturalizado norte-americano, teve durante toda a sua vida dois grandes inimigos declarados: o comunismo e a psicanálise. Do regime bolchevique ele abominava a tirania que o havia obrigado, juntamente com sua família, a fugir da União Soviética para nunca mais voltar, e a massificação ideológica que reduziu a vida social e cultural da sua terra natal à mediocridade. Da psicanálise, sobretudo norte-americana, que era a que ele conhecia, era a estreiteza de visão capaz de reduzir uma obra a um punhado de chavões que ele não aceitava. Hoje, após a queda dos regimes do Leste europeu e após a crítica de Lacan à psicanálise norte-americana, é preciso reconhecer que as críticas de Nabokov à revolução soviética eram fruto de um conhecimento de perto da realidade do seu país, assim como os seus comentários ácidos contra a psicanálise deveriam ser referendados por todo analista contemporâneo, ou quando nada por aqueles familiarizados com o retorno a Freud de J. Lacan.
A obra que trago a vocês hoje é um conto, publicado originalmente em russo em 1926 (a obra literária de Nabokov foi escrita em russo até 1938) e traduzido para o inglês com revisão do autor para uma edição americana em 74. Devido ao objetivo da nossa intervenção torna-se necessário revelar o seu enredo e prejudicar, infelizmente, o prazer da leitura daqueles que ainda não o conhecem, revelando o seu (interessantíssimo) final.
Somos apresentados inicialmente ao jovem Erwin, habitante de uma cidade européia (muitos dos personagens de Nabokov nessa fase da sua produção literária são imigrantes russos como ele ou europeus). Acerca de Erwin, somos informados que é “morbidamente tímido”, ou seja, que tem uma forte inibição que o impede de aproximar-se das mulheres. Ele tem, contudo, uma fantasia, e o autor repete no início do conto o mote, que retornará mais adiante: “Fantasia – o frêmito, o êxtase da imaginação irrefreada!” Erwin mantém um harém imaginário, constituído pelas mulheres desejáveis que ele encontra na rua e “coleciona”. E o autor acrescenta: “Como era feliz o nosso Erwin (…)!” Uma tarde, enquanto dedica-se ao seu passatempo favorito, observando e “colecionando” as mulheres enquanto descansa na mesa de um café, Erwin cede um lugar na sua mesa a pedido de “uma senhora alta, de meia idade” que é também descrita como “corpulenta”, com “um rosto emplastrado de pó-de-arroz e traços algo masculinos”. Essa senhora revela ser capaz de ler a sua mente. Trata-se na verdade, do Diabo em pessoa, que, como ele revela, costuma renascer três ou quatro vezes a cada dois séculos, encarnado num ser humano. O mesmo Diabo comunica então que vai morrer em breve e está disposto a realizar o desejo do jovem Erwin, entregando a ele todas as mulheres que ele escolher entre o meio-dia e a meia-noite do dia seguinte. Acrescenta que fará isso sem esperar nada em troca: “Não preciso de sua alma para nada”. Antes, ela havia dito “Gostei de você imediatamente. Essa timidez, essa imaginação audaciosa”. Há porém uma única condição: as escolhidas têm de perfazer no total um número ímpar. Os leitores poderiam pensar que o final do conto pode ser previsto desde já: o personagem não conseguirá chegar a um número ímpar. Essa seria a solução que um escritor mediano encontraria; não é o caso, entretanto, de Nabokov, que nesse inicio da sua carreira literária já apresentava as marcas da sua genialidade.
Acompanhamos então o despertar de Erwin na manhã seguinte, não sem um irônico comentário do autor sobre a suposição de que o seu encontro com o Diabo havia sido um sonho: “Esse recurso retórico é muito comum nos contos de fadas e, como no contos de fadas, nosso jovem cedo descobriu que estava errado”. Logo após o meio-dia ele inicia a sua lista, ao perceber uma jovem de costas da qual admira a curva da nuca, e que ao voltar-se para ele emite o sinal combinado pelo Diabo como indicativo da sua inclusão no harém. Mais quatro mulheres adiante, Erwin reencontra o Diabo, que lhe adverte: “Excelente. Número ímpar. Eu o aconselharia a parar por aí”; e combina um encontro à meia-noite numa casa especialmente construída para a realização do seu desejo. Ele retorna à sua casa, mas, insatisfeito com a pequena quantidade do seu harém, parte novamente em busca de outras para ampliá-lo. Assim é que, algumas horas e algumas mulheres depois, ele exclama: “Onze horas e onze mulheres. Acho que chega”. Mas um encontro casual com um senhor acompanhado pela sua filha adolescente precipita o sinal de que o harém aumentou para doze. É um momento tenso para Erwin, que tem que encontrar uma mulher que desperte o seu desejo em meia hora. Mas ele se consola dizendo: “Tenho certeza de que encontro outra (…) Talvez seja a melhor de todas” (grifo nosso).
E de fato encontra. Uma jovem por quem ele é inexplicavelmente atraído, que passa por ele rapidamente, e a quem ele segue desesperadamente, na esperança de ver-lhe o rosto. Nabokov prolonga o suspense até o final, quando o personagem finalmente consegue alcançar a moça e ver-se face a face com ela poucos segundos antes da meia-noite. “Virou-se para ele e, na luz que o lampião lançava através das folhas verde-esmeralda, Erwin reconheceu a moça que pela manhã brincava com o cachorrinho preto e felpudo na alameda de cascalho – e imediatamente relembrou, imediatamente compreendeu todo o seu charme, seu terno calor, seu esplendor incalculável”. A 13ª revela ser, na verdade, a 1ª da lista, o que faz com que esta perfaça um total par. É o fim da linha para Erwin, que encontra o Diabo esperando no carro e despede-se, rumando para casa.
Além do surpreendente e irônico final com que nos brinda, Nabokov nos deixa algumas pistas para compreendermos o desejo do seu mal-sucedido personagem. Em primeiro lugar, o que atraiu verdadeiramente Erwin na jovem que passava, e da qual não pôde ver o rosto até o encontro fatídico à meia-noite? Deixemos a palavra com o autor: “Só viu pelas costas, e não saberia explicar de onde vinha o desejo tão lancinante de ultrapassá-la para ver seu rosto. É claro que se podem escolher palavras ao acaso para descrever-lhe o porte, o movimento dos ombros, a silhueta do chapéu – mas para quê? Alguma coisa que transcendia os traços visíveis, uma espécie de atmosfera especial, uma excitação etérea, mantinha Erwin fisgado”. E mais adiante: “O que será que o atraía? Não seu modo de andar, a forma de seu corpo, mas algo mais, alguma coisa fascinante e insopitável, como se uma corrente de alta tensão a circundasse: simples fantasia, quem sabe, o frêmito, o êxtase da imaginação (…)” E temos aqui mais uma vez o mote com o qual o autor introduz o conto.
Contudo, perguntamos, o que atraiu Erwin a primeira vez que viu a moça, no início da sua caçada? Voltemos a esse momento: “Em meio a esse variegado cenário, Erwin atentou para uma moça vestida de branco que se acocorava para pentear, com dois dedos, um gordo e peludo filhote de cachorro com verrugas na barriga. A cabeça inclinada deixava a descoberto a parte de trás de seu pescoço, exibindo o ondulado das vértebras, a penugem alourada, a terna depressão entre as espáduas, enquanto o sol, furando as folhagens, encontrava fios dourados em seus cabelos castanhos”. Ou seja, a primeira vez que a vê e que interessa-se por ela, escolhendo-a como a primeira da sua lista, Erwin a vê de costas. Da mesma maneira, portanto, como a vê ao reencontrá-la pela 2ª vez, no afã de perfazer um número ímpar e sente-se novamente atraído por ela. Atração esta, como vimos, para a qual não encontra nenhuma explicação plausível.
Sentimo-nos autorizados, portanto, com licença de Nabokov, a supor que Erwin sabia que já conhecia a moça, que esta já fazia parte da sua lista. Sabia portanto que ao escolhê-la como a 13ª estaria perdendo todas as outras (além dela própria). Que Erwin inconscientemente sabia que a última da sua lista era de fato a primeira é atestado pelas diversas referências ao caráter inefável, impreciso, nebuloso daquilo que nela o atraiu, ao contrário das outras, para as quais ele tem uma justificativa bastante materialista para incluí-las na sua lista. Nesse ponto ele estava certo quando disse que encontraria no final “a melhor de todas”. Para ele a 13ª, a última da lista, era de fato a primeira, a que inaugura a lista abrindo a possibilidade da realização do desejo e ressurgindo no final para confirmar a sua qualidade de objeto do desejo impossível, fechando todas as possibilidades e fazendo ruir toda a lista. É essa uma, essa mulher de carne e osso, que ele não pode ter, e que é preciso dar um jeito de perder para que possa continuar tendo todas no seu harém de fantasia. É o providencial desmoronamento da sua lista que garante que o seu desejo seja mantido, mantido enquanto impossível de ser realizado. E que garante também que o objeto do desejo seja mantido a uma distância segura, que só possa ser alcançado na fantasia. Uma variante polissêmica permitiria tomar esse encontro com a 13ª como uma forma da perda de interesse pelo objeto no momento em que este é alcançado. Quando Erwin alcança a moça, ela já não serve mais; qualquer uma, nesse momento, serviria, menos ela.
Erwin trabalha, portanto, pelo fracasso da realização do seu desejo. Lembremos que, no início do conto, quando ele nos é apresentado como um jovem “morbidamente tímido”, colecionando mulheres num harém de fantasia e esquivando-se delas na realidade, o autor ao mesmo tempo comenta: “Como era feliz o nosso Erwin (…)”. Feliz ele era na situação inicial, na qual mantinha, através da sua fantasia, o seu desejo suspenso da sua realização. Ao que parece a única perturbação nessa situação de felicidade é o aparecimento desse Diabo generoso e benfazejo que ele não invoca e que lhe oferece a realização da sua fantasia sem cobrar absolutamente nada em troca. Talvez, se ele tivesse exigido a sua alma como pagamento, as coisas se tornassem mais fáceis para Erwin, mas nem isso lhe é cobrado. A realização da sua fantasia lhe é oferecida gratuitamente, e a partir daí ele vai tentar evitá-la a todo custo. E o único recurso que lhe resta para isso é a exigência banal do número ímpar de mulheres. Mesmo para isso é preciso contornar a ajuda desse solícito Diabo, que intervém no meio da busca para advertir-lhe mais uma vez da necessidade de manter um número ímpar.
É interessante, aliás, que Nabokov tenha encontrado para o Diabo uma encarnação feminina. Esse Diabo generoso e benfazejo é uma mulher, e não somente uma mulher, mas uma coroa alcoviteira. Propiciadora desinteressada da realização da fantasia do personagem, ela chega a dizer em certo momento que “sabe” que Erwin quer incluí-la no seu harém, para acrescentar logo em seguida que isso é apenas uma brincadeira. E o próprio Erwin divaga, a certa altura da sua busca: “Certamente, ela vai ver tudo escondida, e por que não? Dá um toque ainda mais especial”. Erwin se coloca, portanto, na sua fantasia, a serviço do gozo perverso, voyeurista, desse Outro.
Esse Outro generoso, poderíamos qualificá-lo de maternal, não pelo fato óbvio de ser uma figura feminina mais velha que o personagem, nem tampouco pela sua solicitude em relação a este, mas porque o induz à demanda. De fato, na sua primeira aparição, o Diabo, como vimos, não é invocado, algo pouco comum nos relatos literários em que aparece. Mesmo na conclusão do seu pacto Erwin nada pede, tudo lhe é oferecido. É preciso então que ela faça uma segunda aparição, inteiramente desnecessária, para perguntar a Erwin: “Como vão as coisas?” E nesse momento Erwin chega finalmente a fazer uma demanda: “Seria bom que no começo elas estivessem vestidas, quer dizer, que apareçam exatamente como estavam quando eu as escolhi. E que sejam muito alegres e carinhosas”. Está feita a demanda, que o Outro materno prontamente aceita.
Esse Outro obsceno, facilitador de sexo e supostamente voyeurista, que induz o personagem a tomar o seu desejo transformando-o numa demanda, quer também incluir-se na lista – em que lugar? antes da primeira? (Freud vê na etiologia da neurose obsessiva uma satisfação sexual precoce). Cabe ressaltar, também, que a morte desse Diabo feminino no final do conto é inteiramente desnecessária, do ponto de vista estritamente literário. Em termos da narrativa, a saída de cena do Diabo após o não-cumprimento da sua exigência do número ímpar poderia perfeitamente dispensar o recurso à sua morte. O obsessivo, como sabemos, mantém um flerte constante com a morte, seja através da agressividade que dirige ao outro (ao semelhante), seja por vislumbrá-la como único limite possível às suas infinitas dúvidas e cogitações. Erwin não pode ter uma mulher porque deve esperar a 2ª da lista e a seqüência; não pode ter cinco, porque esse número não o satisfaz; tampouco pode ter onze, porque surge uma 12ª para atrapalhar; finalmente não pode ter treze porque a 13ª é, de fato, a 1ª. Além do próprio caráter metonímico do desejo, o que essa lista revela é o movimento circular, repetitivo, do desejo obsessivo, no qual a lista infinita de objetos nunca chega a um total definitivo, mas deixa sempre o sujeito na carência. Só a morte, ele acredita, pode por fim a esse círculo vicioso de um desejo estéril e repetitivo. E sobre essa Diaba que vai recair, nesse caso, a agressividade mortífera. Convenhamos, alguém poderia lembrar-nos que a nossa interpretação nesse ponto seria excessiva, pois não é Erwin quem mata o Diabo. Mas, enfim, como nos lembra Nabokov, é só um conto de fadas. * Texto apresentado no 1o Congresso Internacional do Colégio de Psicanálise da Bahia, em julho de 96 e publicado nos Anais do Congresso, Urânia Tourinho Peres e Ma Tereza Ávila Dantas Coelho (orgs.), Salvador, 1998. Referência 1) “Conto de fadas”. In Perfeição, S.P.: Cia das Letras, 1996.