Marcus do Rio Teixeira
Saboreei numerosas palavras.
Jorge Luis Borges
Sempre na berlinda, injustamente assimilada à traição, a tradução é lembrada, na maioria das vezes, numa comparação desfavorável com o original e, bem mais raramente, como merecedora de um elogio. É o mestre Borges, contudo, quem agradece à sua ignorância do idioma grego o contato mais aprofundado com a obra de Homero através das múltiplas versões de múltiplos sentidos. Até o mais rigoroso ? ou mais pedante ? dos lacanianos, na solidão do seu consultório, tendo de optar entre a leitura de um texto de Lacan no original e uma boa tradução, por certo preferirá esta última, cotejando-a eventualmente com o texto de origem para dirimir dúvidas em passagens controversas. De fato, a visão mais aceita hoje em dia é aquela que considera a tradução não apenas uma mera cópia da obra em outro idioma, mas um novo trabalho de criação (entre nós, Haroldo de Campos prefere falar em transcriação), que permite ao leitor experimentar um novo prazer de leitura.
Estamos falando, neste caso, do texto literário. O texto científico situa-se num registro totalmente diverso, por colocar em primeiro plano a necessidade de transmitir uma determinada informação e pelo apagamento do sujeito que o discurso científico preconiza. Já o texto psicanalítico, como não podia deixar de ser, herda da psicanálise um estatuto mais complexo; se por um lado tem em comum com o texto científico a transmissão de uma informação e a busca da exatidão teórica, ele deve contar sempre com a irrupção do sujeito e com a equivocidade do significante ? o que, por outro lado, o aproximaria do texto literário. Deixo a tarefa de conciliar estas contradições a cargo dos apreciadores daquela fase de Lacan em que ele acreditou poder trazer algo do rigor da matemática à teoria psicanalítica.
A minha experiência profissional, de início como psicanalista e leitor, em seguida também como editor, levou-me a estudar e comparar ? e, hoje em dia, a revisar ? as traduções dos textos psicanalíticos para o português. Talvez seja a partir daí que eu me permita dizer duas ou três coisas sobre esse tipo de tradução; em primeiro lugar sobre o aspecto ?literário? ou estilístico, em seguida, sobre o aspecto ?científico?, ou, melhor dizendo, teórico.
A preferência pessoal fala sempre mais alto quando se trata do primeiro aspecto e, quanto a mim, esta recai sobre a tradução que enfatiza a língua de chegada ? no nosso caso, o português ? e prioriza a fluência, sem nos dar a impressão de um texto escrito por um estrangeiro que não domina bem nosso idioma. Daí a minha impaciência com os galicismos, que me parecem um traço de subserviência à língua estrangeira ou mesmo um sinal de preguiça mental, como os anglicismos dos adolescentes ?micreiros? que dizem deletar (recentemente dicionarizado, inclusive) por não saberem traduzir to delete por apagar, suprimir, cancelar, eliminar, etc. Algumas traduções de textos lacanianos parecem ter sido escritas num novo dialeto que mistura os vocabulários e as sintaxes do português e do francês.
No seu ABC da literatura, Ezra Pound alerta sobre a deterioração da língua, cujos exemplos mais flagrantes seriam a linguagem da política e, atualmente, da mídia. De fato, ambas são exemplos dessa linguagem rasa, burra, de vocabulário escasso e sintaxe empobrecida que, para Pound, representa o estágio mais avançado do estiolamento do idioma de um povo. Como medida preventiva e curativa ele propõe o seu paideuma, uma seleção literária do que os escritores produziram do melhor, feita para ser consultada com facilidade pelas novas gerações. O empreendimento crítico poundiano serve para nos lembrar que aquele que aspira ser um bom tradutor de textos psicanalíticos tem mais a aprender freqüentando as obras dos grandes escritores do nosso cânone do que compulsando as obras completas de Freud e Lacan.
Isso nos conduz ao segundo aspecto da tradução do texto psicanalítico. Evidentemente, este diz respeito a uma disciplina que compreende, entre outras coisas, uma prática clínica e um corpo teórico bem elaborado, com todo o aparato conceitual que lhe é específico. Não podemos, portanto, tratar uma tradução desse tipo com critérios puramente literários. Há de se estabelecer, por exemplo, um acordo quanto à tradução dos conceitos, o que não é um problema pequeno considerando a babel das versões existentes hoje em dia. Imaginem, só por divertimento, uma mesa redonda sobre a Verleugnung composta por quatro ou cinco analistas: o público poderia ter a surpresa de ouvir cada um deles referir-se ao tema da mesa com um nome diferente!
Algumas vezes, encontro em artigos e traduções recentes de autores brasileiros palavras-valise e conceitos lacanianos citados no original. Esse tipo de procedimento me parece absolutamente injustificável, uma vez que já existem há vários anos ótimas traduções para tais termos, muitas vezes obra de tradutores anônimos. A merecida consagração dessas traduções é o resultado de um longo processo de experimentação e aprimoramento, até se chegar a um termo que ganhe aceitação na comunidade analítica. O estudo desse processo pode ser extremamente útil para se compreender e elaborar a tradução contemporânea dos conceitos lacanianos.
Tomemos, por exemplo, o caso de parlêtre. Nos anos 70, tentou-se impor o uso de falesser, que não pegou, é óbvio, por ser demasiadamente marcado pelo sentido de morte, não presente no original. De circulação mais restrita, falente não ganhou adeptos, provavelmente devido à sua esquisitice. Fala-ser foi sem dúvida a opção mais pobre, por desdobrar de modo didático o neologismo lacaniano. Por fim, falasser consagrou-se como o termo preferido pelos autores e leitores; uma opção inteligente, pois traduz com perfeição o neologismo juntando duas palavras apenas com a duplicação do ?s?, para impedir que este soe como um ?z?, como observa Francisco Settineri. Note-se, entretanto, que ainda ficou de fora o sentido de letra (lettre), presente no original.
Há também uma espécie de ?subcategoria? das expressões lacanianas cuja especificidade eu gostaria de comentar. Sua característica principal é a de produzir homofonias perfeitas em relação a outros termos, as quais são impossíveis de serem distinguidas pela escuta. Essas expressões só podem ser percebidas, só podem ?surgir? a partir da leitura. Elas foram criadas preferencialmente para a escrita, em vez da fala, portanto. Sem forçar muito a memória, me ocorrem dois exemplos: sinthome e hommossexuel, cujos pares homófonos, é claro, são symptôme e homossexuel. A minha opinião é que, em se tratando de palavras que só se distinguem na escrita, sua tradução deveria privilegiar igualmente o jogo da escritura e da letra, em vez de buscar uma diferença pela sonoridade. É por isso que para traduzir sinthome me parece mais justo acrescentar apenas a letra ?h? (sinthoma), abandonando alternativas mais complicadas como sinthomem, que privilegiam o significado e não o significante.
Quanto a hommossexuel, a dificuldade de tradução é ligeiramente maior. No Seminário 20, Lacan referiu-se às histéricas como hommossexuels, não por serem lésbicas, mas por ?faire l´homme?. O neologismo lacaniano é extremamente sutil: a letra ?m? duplicada remete a homme (homem), em vez de homo (semelhante). O termo passou batido pelo tradutor do Seminário, que tascou homossexuais mesmo. Há algum tempo tomei conhecimento de uma tentativa de tradução como homemsexual. A opção me parece um tanto pesada e não faz jus à sutileza do original. É obvio que, se assim o quisesse, Lacan poderia muito simplesmente ter dito hommessexuel; se ele não o fez, se preferiu o recurso mínimo da repetição de uma letra, creio que deveríamos respeitar essa opção. Há alguns anos eu mesmo sugeri a tradução homomsexual, colocando o ?m? a mais no final, como em homem no nosso idioma. Ainda não tenho certeza, contudo, de que esta tradução seja satisfatória.
Problemas como esses me levaram a propor um esboço de um Glossário geral das traduções consagradas dos conceitos freudianos e lacanianos no Dicionário de Psicanálise ¾ Freud & Lacan, que é a nossa versão brasileira do Dictionnaire da Association Lacanienne Internationale. Trata-se de um work in progress, como o próprio projeto do Dicionário, aliás. Para mostrar que o próprio autor destas mal traçadas (e bem digitadas) linhas não é ele próprio imune aos equívocos da tradução, cito um problema mais recente com o qual me deparei. Ao revisar uma tradução de Letícia Patriota sobre Le graphe de Lacan, achei que poderia substituir grafo por gráfico, por julgar o primeiro um neologismo e um galicismo (vide a minha implicância com os galicismos). De fato, grafo, como substantivo masculino, não consta do nosso Aurélio, nem do velho Caldas Aulete, nem sequer do Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antonio Geraldo da Cunha, só para citar alguns. Além disso, a etimologia de gráfico é a mesma de graphe, ambas remetem à grafia.
Erro meu: grafo é palavra da língua portuguesa, do vocabulário matemático, e consta, por exemplo, da edição de 1998 do Michaellis. O que me leva a concluir que o trabalho da tradução, além de ser infindável – o que talvez não seja uma característica exclusiva sua – não nos impede, pela sua prática, de cometermos equívocos banais. E que talvez seja o amor pelo texto que nos leve a persistir em busca de uma tradução tão perfeita quanto impossível.
Referências bibliográficas
Caldas Aulete. Dicionário
CHEMAMA, Roland et allii. Dicionário de psicanálise ? Freud & Lacan, vol.1. Salvador: Ágalma, 2004 (2a edição).
CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20, Mais, ainda… Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 19
POUND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Cultrix, 1973.