Robson de Freitas Pereira
“Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, Uma série de contas-entes ligadas por um fio memória, Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?”
Álvaro de Campos
Atenção! Doador remontado/reconstruído. Preparem seus olhos, seus corpos, suas angústias para nova oportunidade de apropriação. Outra ocasião de renovar a “ética do dom” na passagem da inutilidade ao desejo.
Sabemos que mesmo para quem viu, entrou e passeou pelo corredor instalado na II Bienal do Mercosul, esta será uma experiência nova. Afinal, o Galpão das Tesouras nem existe mais. Um incêndio o levou. O espaço agora é outro, diferente, como será o efeito?
Certamente haverá algo novo, como acontece em toda repetição verdadeira, aquela que vale. A repetição do mesmo só acontece em nosso imaginário, quando queremos fixar alguma identidade, algum sofrimento que dê sentido a nossas vidas. Mergulhados neste oceano de linguagem, às vezes, somos acossados pelo medo, pela vertigem, pela voragem, e tememos não saber nadar.
No Doador trata-se de um mar de objetos. Ou melhor, frutos retirados de um mar de memórias para nos empurrar numa travessia. Duas portas sempre abertas, sinalizando que entrada e saída dependem apenas de onde se está chegando. Um corredor de quase dez metros de comprimento, onde 270 objetos com um sufixo em comum (DOR) espreitam nosso olhar. Qual dor eles tentam conjurar? Não sabemos antecipadamente.
Talvez se trate de lidar com a perda, inicialmente pura perda, que se transforma em falta para impulsionar um desejo. Daí um sentido para revisitar.
Quando Álvaro de Campos fez Fernando Pessoa escrever “Lisbon revisited” havia uma perda em jogo. Tempo da morte da mãe. Mas para fazer o luto, o poeta escreveu sobre sua cidade, com título em outra língua. O inglês, sua língua adotiva, sua pátria, sendo coerente com sua afirmação: minha pátria é minha língua.
“Nada me prende a nada…”.
Outra vez te revejo cidade da minha infância pavorosamente perdida…
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar
E aqui de novo tornei a voltar?”.
O sujeito que retorna não é mais o mesmo que partiu, tornou-se “estrangeiro aqui como em toda parte/ casual na vida como na alma”. Casual e errante, como todo sujeito que elabora uma perda. Como todos nós. Doadores.
A vida já foi tomada como uma errância, uma trajetória determinada pelas circunstâncias. O corredor pode ser uma de suas metáforas, da mesma forma que uma estrada. Um corredor do edifício de nossa infância, ou adolescência, onde íamos visitar os avós, os tios, as namoradas. Estranho e familiar “umheimlich”. Um “déja vu” que se transformou. Já estivemos ali e, simultaneamente, não reconhecemos todos os seus sinais, todos os seus objetos. Nem poderíamos, nem todos eles nos pertencem. Pertencem aos outros “que no son si yo no existo/ los otros que me dan plena existência”, na voz de Octavio Paz. Pertencem também a um lugar Outro, lugar onde habita a palavra dos meus parentes e vizinhos, mas também dos antepassados, que autorizam minha trajetória.
Este Outro, lugar de uma tradição da qual eu me aproprio para poder dispensá-la. Tenho que passar por suas marcas, absorver suas dores, lutar contra seus ensinamentos, saber que eles agem sobre mim, sobre meu corpo, para poder me despedir, me fazer singular.
Como fez Bob Dylan, em “Highway 61 Revisited”. Este que nascido Zimmerman, adotou a estirpe dos poetas ingleses (Dylan Thomas) e fez seu o canto folclórico americano. Revisitou, fez-se hóspede da “Highway 61” que atravessa os estados do Sul. Corredor por onde passaram os menestréis que cantaram as glórias e os sofrimentos da América. Brancos e negros. Quando pensaram que iria instalar-se confortavelmente, Dylan politizou suas letras (Like a rolling stone, Ballad of a thin man) e, suprema ironia, eletrificou o folk. Coisa que pouco tempo depois a Tropicália faria com o rock e a música popular brasileira na época dos Festivais. Ambos recebidos com vaias estrondosas. Apupos estrepitosos de um tabu que desmoronava. Revisitar, diz o dicionário, é também infligir, impor. O novo, às vezes se impõe, a custa de assolar nossas convicções, mostrando o reverso da medalha.
Do dejeto ao desejo
Demonstrar em ato criativo a passagem da inutilidade ao objeto de desejo é uma das funções do doador. Os objetos que ali estão tiveram uma utilidade, um dia. Com o tempo, perderam sua utilidade primeira. Seu valor de uso. Com a inovação tecnológica, com a produção em massa, surgiram outros objetos mais afeitos a exigência de novidade de nossos desejos e ao imperativo de consumo. Com o tempo alguns tornaram-se inúteis, outros dejeto. Gastou-se o valor de troca. Não gozávamos mais com eles. Não serviam ao nosso gozo, nem ao dos outros.
Entretanto, pelo simples fato de seu nome possuir um sufixo comum, uma sílaba, uma palavra puderam mudar de estatuto. Transformaram-se em causa/impulso de um desejo. Coisa difícil nestes tempos de consumo rápido e transações instantâneas. A lógica de nossa cultura determina que os objetos tenham um valor de troca cada vez mais rápido e perecível. Rapidamente transformam-se em lixo biodegradável ou não. Mas estes objetos inúteis podem reverter a sua e a nossa posição, bastou alguém dispor-se a recebê-los a ser receptador das doações, suportar a angústia e indicar que um desejo estava colocado em exercício. Não precisávamos saber sua causa última, afinal no princípio está uma perda, uma falta, um intervalo, uma dor. Se reconhecemos a distância podemos arriscar o salto. Talvez houvesse um desejo de compartilhar, de dar outro destino ao imperativo que obriga a jogar fora as coisas “inúteis”. Revertendo um pouco nosso destino narcísico . Louise Bourgeois escreveu certa vez que os objetos de arte podem ser perfeitamente inúteis frente às exigências pragmáticas. Ela fazia um comentário sobre a coleção de estatuetas que Freud recolhera ao longo da vida. Para espanto dos hagiógrafos que vêem um sentido estrito em cada ato dos gênios, ela ousadamente afirmou que aquela coleção de terracotas não precisava ter nenhum sentido para a psicanálise, ou mesmo para a história da arte. Não precisavam ter contribuído na elaboração de qualquer conceito, assim como questionava até mesmo seu status de obras de arte. Simplesmente podiam estar ali para deleite pessoal de Freud, para dar um alívio no trabalho estafante de escutar o sofrimento das pessoas. Louise Bourgeois sublinhou o valor simbólico das estatuetas de Freud. Este simbólico que se engendra com o real e o imaginário em nossa vida.
O doador cumpre esta função; possibilita reverter o valor de uso, ir além do gozo efêmero com o objeto de consumo, permitindo transformar a angústia do encontro com o dejeto no exercício de um desejo. É uma forma de reinvenção da cerimônia do “potlacht”, onde originalmente eram queimados os bens mais preciosos. Agora são os objetos inúteis que adquirem um outro valor. Um abridor de latas enferrujado (cego), pode nos ajudar a enxergar melhor. Um pequeno apontador de lápis permite nos orientar em direções diversas. Enfim, quem se dispuser a colocar “algo de seu”, a simbolizar a “libra de carne” que Shakespeare marcou como preço de nossa humanidade no “Mercador de Veneza” pode percorrer o corredor, fazer a experiência, enfrentar o “perigo” de uma travessia. Os objetos estão ali, suspensos no tempo e no espaço. Sabemos que o doador é evanescente, mas o tempo da passagem é contingente para relançar nosso desejo e abertura para uma invenção que é própria e compartilhada simultaneamente.
Sobre o autor
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
* “Doador revisitado” , publicado
in “Apropriações/coleções” , catálogo da exposição.
Curadoria: Tadeu Chiarelli, Edição: Santander Cultural, Porto Alegre, 2002