Considerações a respeito de um princípio ético da psicanálise. Em torno de um caso clínico.

Sidnei Goldberg

Sidnei Artur Goldberg1

Your Mother Should Know
(Lennon-McCartney)

Uma questão recorrente em nosso campo diz respeito ao tema da Ética. A pergunta é: haveria uma ética própria da psicanálise ou deveríamos pensar numa ética geral, frente à qual, qualquer pessoa, analista ou não, pudesse se posicionar? Em artigo que escrevi para o Segundo Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise, abordei uma questão que delineia o que poderia ser considerado como um princípio ético da psicanálise. Se entendermos por princípios éticos as diretrizes que regem as ações dos psicanalistas, podemos, sim, falar em ética da psicanálise. Nesse caso, quais seriam os fundamentos que balizariam esta ética, que não fossem simples standards técnicos? O tema da ética da psicanálise está presente desde Freud. Em seus Artigos sobre Técnica2, ele apontou a transferência como ponto de resistência e, simultaneamente, motor da cura, mostrando que grande parte do sofrimento dos sujeitos estava relacionada ao fato de eles estabelecerem um laço com determinadas pessoas que iam encontrando na vida, colocando-as num lugar a que chamou de ?clichê estereotípico? ou, segundo a terminologia de Jung, ?imago?. Lacan estende essa idéia e mostra que a estes ?outros?, colocados em posição privilegiada de grande Outro, o sujeito se oferece em posição sacrificial de gozo. Por sua vez, Nasio aponta uma tendência do sujeito humano a antropomorfizar o grande Outro, que, no entanto, é apenas a cadeia de significantes na qual todos estão alienados.

Apesar de, nos Artigos sobre Técnica, propor uma série de preceitos técnicos ? tempo das entrevistas, dinheiro, divã, etc. ? Freud ressalta que esses preceitos referem-se ao modo por ele encontrado para conduzir os processos analíticos. As pessoas poderiam utilizar outros preceitos técnicos, sem, porém, abandonar alguns pontos essenciais, tais como a associação livre e a dissolução da transferência num momento mais avançado do processo analítico. Em ? Recordar, Repetir e Elaborar3 ? afirma que aquilo que não puder ser recordado na fala, será repetido na transferência, ressaltando a idéia da transferência como motor da cura. A posição que o sujeito toma frente ao Outro no processo de análise ? também conhecida como neurose de transferência ? será instrumentalizada de forma que o analista possa dirigir o sujeito a um ponto em que ele tenha a possibilidade de não mais repetir o laço marcado pelas características infantis. Esse laço poderá ser eventualmente encenado em jogos sexuais, mas não será reproduzido sob a forma compulsiva de um retorno do recalcado. Tendo em vista essas questões, pretendo abordar um dos princípios condutores da ética psicanalítica, o da dissolução da transferência, que visa possibilitar ao sujeito deixar de colocar-se numa posição de gozo em relação aos seus semelhantes postos, estes, no lugar do grande Outro. A cura psicanalítica destaca portanto a dissolução da transferência como um dos pontos éticos centrais da psicanálise. Em outros termos, trata-se de evitar que qualquer semelhante possa ocupar o lugar do Outro, ou seja, que qualquer semelhante venha a ser tomado como Outro. Ou, ainda, evitar que ocorra a absolutização do pequeno outro (os semelhantes) na posição do grande Outro. Para reportar esse processo, passemos então ao relato de um fragmento clínico.

Dois tipos de circuitos de gozo Freya costuma dizer que ?nunca consegue descobrir nada?. Afirma que outras pessoas fazem análise e conseguem entender coisas, ?eu não consigo, acho que sou muito burra para isto.? As pessoas a quem se refere são mulheres: amigas, pessoas para quem trabalha ou da família. Todas fazem ou já fizeram alguma terapia ou algo que o valha e principalmente são providas das qualidades que lhe faltam, tais como: marido, namorado, filhos, carreira, dinheiro e por aí vai. Existem dois tipos de circuito compulsivo em que Freya entra de forma alternada. No início de sua análise aparecia preponderantemente o primeiro, que consiste nas seguintes etapas: algo escutado aleatoriamente sobre os sintomas de alguma doença faz com que ela comece a pensar que pode estar sofrendo do mesmo mal ou de algum correlato. Lembremos o que Freud nos diz da contaminação histérica em enfermarias: é claro que não se trata de pura imitação, é preciso que haja uma identificação com as causas. O segundo momento é o que ela define como ?eu preciso descobrir o que é, eu quero ter certeza do que é que eu tenho, e é prá já.? Neste ponto ela começa a perguntar para as pessoas amigas o que acham que pode ser e o que é que ela deve fazer. Simultaneamente marca hora em algum médico. Na consulta procura conduzir o médico a lhe dizer o que é que ela pode ter na pior das hipóteses. Sai sempre com requisição de vários exames. Quando isto não acontece, acaba procurando outro médico até que algum a mande para os exames. A terceira etapa consistia no desespero em saber o resultado dos exames. Comenta às vezes que é uma sorte ter um seguro-saúde e não precisar pagar pelos exames clínicos. Este é um ponto de engodo, pois o pagamento é muito mais caro, pois o faz com o próprio corpo. Começa então a telefonar, insistentemente, para o médico e para o laboratório, na tentativa de ter acesso imediato aos resultados. O processo chega a tornar-se cômico a ela mesma, pois é reconhecida pela voz, sendo identificada pelo nome pelos atendentes da central telefônica que atende a rede de laboratórios. O tempo de espera é angustiante. Quando, finalmente, recebe a resposta de que não tem nada, sente-se extenuada. Pergunta-se, então, por que sempre entra nessas histórias. Passa um tempo e surge outra questão corporal que a faz perguntar novamente aos médicos: ?O que é que eu tenho??. Freya chega à sessão extra que pedira e diz: ?eu nem sei se vai adiantar ter vindo aqui, mas é que eu cismei agora com uma nova ? diz rindo ? eu tô louquinha. Enfiei uma coisa na cabeça, mas resolvi passar aqui primeiro para ver se você me ajuda. Eu cismei que eu tô com câncer no pulmão. E se eu estiver com alguma coisa e ninguém sabe? Com meu pai, demoraram para descobrir…? Eu lhe pergunto por que câncer e por que no pulmão. Ela diz que não sabe. A única coisa que lhe ocorre é que seu pai morreu de câncer no pulmão seis meses antes. Mas por que só agora lhe ocorre o pensamento sobre o próprio câncer? Ela não tinha a menor idéia. ?Na verdade eu estava indo marcar uma consulta com um médico porque eu quero fazer uma chapa no pulmão, mas tenho medo que me mande fazer outros exames, como ressonância (medo pela possível demora em obter o resultado como também em razão da aflição por ter que ficar dentro do aparelho de ressonância), aí eu resolvi passar aqui para ver se eu conseguia tirar esta idéia da cabeça, mas eu posso ter mesmo, não é, o que você acha? Queria ver se você me explica porque que eu tenho que começar com estas histórias?. (essas histórias são o que chamei de circuito compulsivo) ?Mas eu sei que você não pode me dizer, eu é que tenho que descobrir, só que eu não consigo. Acho que eu sou muito burra, eu nunca consigo entender nada.?

Este me pareceu um momento interessante em sua análise porque pela primeira vez me procurou antes de iniciar o circuito. Poderia dizer, fazer uma imagem, de que ela se encontrava à ?beira do precipício?, ou seja, no momento que antecede ao que ela chama de ?chapa?. Nas outras vezes, sempre chegava quando já estava em meio a consultas e exames. Não era raro desmarcar sessões por conta dessas ocupações. Perguntei, na falta de outras perguntas, em que momento lhe ocorrera a idéia de câncer no pulmão pela primeira vez. Ela disse que não sabia, que não se lembrava mas de que tinha sido há poucos dias, talvez na sexta ou no sábado. Estávamos em uma segunda-feira. Insisti, disse que talvez fosse importante lembrar no que pensava quando a idéia surgiu. Freya disse então que, na sexta à noite, tinha ido dormir e acordou para tomar água. Quando passou pela sala, sua irmã assistia a um filme do tipo ?Plantão Médico?. Viu uma cena em que dois médicos punham uma chapa de pulmão diante da luz e diziam espantados que ?aquele paciente parecia não ter nada, quem diria…? Qual a doença? Ela não sabe, só viu esse trecho, mas compreendeu que o paciente estava mal e que até então os médicos não sabiam. Percebe então que o paciente do filme está no lugar que ela imagina para si, mas diz que não foi exatamente neste momento que lhe apareceu a idéia do câncer em seu pulmão.

Na quarta-feira anterior, ela havia visto na televisão uma notícia sobre a morte do deputado Eduardo Mascarenhas, só que não informaram a causa da morte. No sábado, leu uma pequena nota em um jornal dizendo que ele morrera de câncer no pulmão. ?Sim, talvez tenha sido neste momento que tenha me vindo a idéia?. Este novo dado pareceu-me insignificante em relação à cena do filme, mas é mesmo desta forma que se processa o mecanismo do deslocamento: o que é importante nos aparece como banal e vice-versa.

Depois de um momento de silêncio, Freya ri e diz: ?você não está lembrando nada em relação a este nome, não é ??. ?O que ??, pergunto. Ela relembra então o tempo em que seu pai estava no hospital, e passou um dia tendo delírios (seu câncer no pulmão foi descoberto a partir de sintomas neurológicos, pois já se evidenciava uma metástase no cérebro). Ele havia sido medicado por um neurologista que atribuiu os delírios ao tumor no cérebro. Freya havia me telefonado dizendo que a auxiliar de enfermagem, ao chegar no quarto, chamara seu pai de ?seu? Eduardo Mascarenhas.

Ela explicou que este não era seu nome, mas a auxiliar informou-lhe que seu pai havia dito que seu nome era mesmo Eduardo Mascarenhas e que era assim que queria ser chamado, pois acreditava estar sendo vítima de um complô. Freya achou que a nova medicação prescrita pelo neurologista poderia estar causando os delírios. Pensou em consultar um psiquiatra, queria saber o que eu achava. Concordei com a idéia e disse que iria dar um ?chute?, pois eu nem conhecia seu pai ? parecia-me interessante que ele houvesse ?escolhido? para si o nome de um deputado (o complô era político) que também exercia a psicanálise e a psiquiatria. De fato, o psiquiatra chamado alterou a medicação e ele não teve mais delírios até a sua morte, alguns meses depois.

O que me parece importante, nessa lembrança, é que Freya aparece numa posição diferente daquela em que sempre se coloca: ?eu sou burra, não sei nada?. Nas duas situações, de forma inusitada, o que ela articula ganha valor. Num primeiro tempo, em relação ao saber médico (o neurologista era um medalhão) e num segundo, em relação ao não-saber do analista, que, naquele momento da transferência, não percebeu qual o alcance do representante da representação, Eduardo Mascarenhas. Concomitante ao não-saber do analista (seu esquecimento), um momento de báscula se abre onde ela pode tramar uma rede de deslocamentos entre as cenas e o seu sintoma.

Nesse momento, a sessão foi interrompida apesar de seus protestos, já que queria que eu lhe explicasse exatamente o desenrolar das coisa

1 Sidnei Artur Goldberg: psicanalista, editor da revista de psicanálise “Textura”, diretor da coleção Discurso Psicanalítico da editora Agalma, co-autor de “Sobre o Desejo Masculino”, ed. Ágalma, “Temas da Clínica Psicanalítica”, ed. Experimento, “Sexualidade Feminina/Masculina” ed. Experimento.
2 FREUD, S. ?Artigos sobre Técnica?.In: Obras completas, vol XII, E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
3 FREUD, S. ?Recordar, Repetir e Elaborar?.In: Obras completas, vol XII, E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, 1976

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