Em “Azul é a cor mais quente” (Abdellatif Kechiche, 2013), Adèle (Adèle Exarchopoulos) é uma adolescente que vive num mundo pequeno, dividindo seu tempo entre as tarefas escolares e a diversão com a galera. Apesar dessa limitação, ela possui uma sensibilidade muito aguçada pela literatura e uma intuição de que o mundo é muito maior do que os papinhos das amigas. Essas características não são exatamente úteis para melhorar a sua relação com o seu meio, sobretudo no que diz respeito ao sexo: ela enjoa rapidamente de um rapaz com quem iniciou um casinho – mais por insistência das amigas do que por um interesse autêntico – e que é nitidamente inferior a ela na visão de mundo.
As coisas mudam quando ela conhece Emma, uma mulher mais velha e mais experiente do que ela e muito convicta na sua opção heterossexual (na definição de Lacan, heterossexual é todo sujeito que ama as mulheres).
A relação das duas é um ótimo exemplo do que Lacan afirma no Seminário 20, Mais, ainda: que as posições masculina e feminina na sexuação não têm necessariamente uma relação com a anatomia. Adèle se situa como objeto causa do desejo para uma Emma que se ocupa da sua sedução de acordo com o cânone masculino. Como frisa Charles Melman, a dimensão da alteridade se instaura no casal, ainda que este seja constituído por seres de corpos semelhantes: Adèle cuida amorosamente do lar enquanto Emma se inquieta com a sua suposta insatisfação e quer que ela seja feliz (o que ela afirma tranquilamente já ser).
O diretor tem o mérito de retratar uma relação entre duas mulheres de forma não preconceituosa e tampouco militante: enquanto seres da linguagem, Adèle e Emma experimentam as dificuldades corriqueiras do laço conjugal entre um homem e uma mulher, que vão do cômico ao trágico. Quando a pulsional Adèle, que devora tudo “mesmo quando não tem fome”, mostra que o sexo para ela é algo tão natural quanto sair na balada, Emma, que busca constituir uma família, não acha isso nem um pouco engraçado.
Apesar do título, a fotografia explora as cores quentes e a textura da pele dos corpos filmados em close. Apesar de não sentirmos a lentidão do ritmo, algumas cenas são muito mais longas do que o padrão cinematográfico atual. Isso se nota, sobretudo, nas cenas de sexo, mas não somente: quando Adèle conversa, dança ou grita slogans numa passeata estudantil a cena se estende por vários minutos. Poderíamos pensar, a princípio, que esse procedimento tem uma intenção erótica: exibir o corpo da personagem que, como uma ninfeta nabokoviana, parece não se dar conta da sua sensualidade, perambulando no mundo com os lábios sempre entreabertos.
Porém, creio que há mais do que uma intenção erótica nessas cenas alongadas além do habitual. Nessa tentativa de igualar o tempo narrativo e o tempo narrado, o diretor parece deixar transparecer uma posição: a ideia de mostrar as coisas “como elas são”. Creio que essa pretensão naturalista pode ser confirmada na forma como a própria história é narrada, evitando fazer um julgamento. Ora, ocorre que as coisas nunca podem ser mostradas “como elas são”, num filme ou em outra obra de arte. Acerca desse tema já se gastou muita tinta e papel (ou tela de computador). Talvez por isso, ao final do filme, ficamos com uma sensação de estranheza, como se tivéssemos acabado de assistir um documentário, e não uma obra de ficção.
Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, editor de Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012), entre outros.