Agalma

Azul é a cor mais quente

Em “Azul é a cor mais quente” (Abdellatif Kechiche, 2013), Adèle (Adèle Exarchopoulos) é uma adolescente que vive num mundo pequeno, dividindo seu tempo entre as tarefas escolares e a diversão com a galera. Apesar dessa limitação, ela possui uma sensibilidade muito aguçada pela literatura e uma intuição de que o mundo é muito maior do que os papinhos das amigas. Essas características não são exatamente úteis para melhorar a sua relação com o seu meio, sobretudo no que diz respeito ao sexo: ela enjoa rapidamente de um rapaz com quem iniciou um casinho – mais por insistência das amigas do que por um interesse autêntico – e que é nitidamente inferior a ela na visão de mundo.
As coisas mudam quando ela conhece Emma, uma mulher mais velha e mais experiente do que ela e muito convicta na sua opção heterossexual (na definição de Lacan, heterossexual é todo sujeito que ama as mulheres).

A relação das duas é um ótimo exemplo do que Lacan afirma no Seminário 20, Mais, ainda: que as posições masculina e feminina na sexuação não têm necessariamente uma relação com a anatomia. Adèle se situa como objeto causa do desejo para uma Emma que se ocupa da sua sedução de acordo com o cânone masculino. Como frisa Charles Melman, a dimensão da alteridade se instaura no casal, ainda que este seja constituído por seres de corpos semelhantes: Adèle cuida amorosamente do lar enquanto Emma se inquieta com a sua suposta insatisfação e quer que ela seja feliz (o que ela afirma tranquilamente já ser).
O diretor tem o mérito de retratar uma relação entre duas mulheres de forma não preconceituosa e tampouco militante: enquanto seres da linguagem, Adèle e Emma experimentam as dificuldades corriqueiras do laço conjugal entre um homem e uma mulher, que vão do cômico ao trágico. Quando a pulsional Adèle, que devora tudo “mesmo quando não tem fome”, mostra que o sexo para ela é algo tão natural quanto sair na balada, Emma, que busca constituir uma família, não acha isso nem um pouco engraçado.

Apesar do título, a fotografia explora as cores quentes e a textura da pele dos corpos filmados em close. Apesar de não sentirmos a lentidão do ritmo, algumas cenas são muito mais longas do que o padrão cinematográfico atual. Isso se nota, sobretudo, nas cenas de sexo, mas não somente: quando Adèle conversa, dança ou grita slogans numa passeata estudantil a cena se estende por vários minutos. Poderíamos pensar, a princípio, que esse procedimento tem uma intenção erótica: exibir o corpo da personagem que, como uma ninfeta nabokoviana, parece não se dar conta da sua sensualidade, perambulando no mundo com os lábios sempre entreabertos.

Porém, creio que há mais do que uma intenção erótica nessas cenas alongadas além do habitual. Nessa tentativa de igualar o tempo narrativo e o tempo narrado, o diretor parece deixar transparecer uma posição: a ideia de mostrar as coisas “como elas são”. Creio que essa pretensão naturalista pode ser confirmada na forma como a própria história é narrada, evitando fazer um julgamento. Ora, ocorre que as coisas nunca podem ser mostradas “como elas são”, num filme ou em outra obra de arte. Acerca desse tema já se gastou muita tinta e papel (ou tela de computador). Talvez por isso, ao final do filme, ficamos com uma sensação de estranheza, como se tivéssemos acabado de assistir um documentário, e não uma obra de ficção.

Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, editor de Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012), entre outros.

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UM CORTE DE PAPEL – REFLEXÕES SOBRE A GRANDE BELEZA

Alguns criticam o diretor Paolo Sorrentino por sua suposta imitação de Fellini. Em A Grande Beleza (2013) essa tentativa de reproduzir o estilo do mestre se evidenciaria sobretudo na escolha das personagens exóticas – a santa, a editora anã… – e na celebração de Roma. Há nessa crítica um tanto de verdade e outro tanto de exagero. É claro que Sorrentino presta uma homenagem sincera a Fellini e tenta emulá-lo em alguns momentos, mas seu filme não se reduz a isso, mesmo porque seu olhar vem de outra época e jamais poderia reproduzir o olhar de um diretor de outra geração, com referências distintas. Sua Roma não pode ser jamais a Roma de Fellini, ainda que o cenário seja semelhante. Ainda assim – ou justamente por isso – ele consegue recortar na cidade recantos que surpreendem e encantam, como fazia o diretor de Roma. O tema do voyeur, do olhar de alguém que espreita sem ser visto é recorrente em várias cenas.

Jep Gambardella – interpretado pelo excelente Toni Servillo –, um jornalista que acaba de completar 65 anos, escritor de um único livro, apresenta-se como um homem dotado de sensibilidade. Talvez seja essa sensibilidade que o condena ao tédio, essa sensação que Lacan descreveu tão bem como o desejo de outra coisa: “Uma ocupação só começa a se tornar séria quando aquilo que a constitui, isto é, em geral, a regularidade, torna-se perfeitamente entediante.” (Seminário 5, As Formações do Inconsciente, p. 184) A rotina, para ele, é o que outros chamariam de diversão. Situado no centro da mundanidade, cercado pelos artistas, pelos ricos e descolados e pelos não tão ricos, ele percebe ao seu redor a marca da mediocridade. As cenas das festas intermináveis e da entrevista com a performer ilustram de forma exemplar essa mediocridade. Porém essa percepção não faz dele um histérico, tampouco um cínico. Não é um histérico porque ao apontar a mediocridade, não o faz desde uma posição exterior, como uma bela alma, mas se inclui na sua crítica. Não é um cínico porque ao contrário deste, não se compraz com a desordem do mundo para concluir que “as coisas não têm jeito” e justificar, desse modo, a sua posição.

Em meio a essa mediocridade, ele busca a “Grande Beleza”, mas afirma nunca tê-la encontrado. É evidente que essa é a grande ironia do diretor, pois a beleza está todo o tempo em volta do personagem, aonde quer que ele vá: nos lugares, nas obras de arte, nos corpos, na paisagem, até mesmo naquilo que ele identifica como mediocridade. Jep, porém, não é capaz de reconhecer a beleza, pois está imerso nela. Como os peixinhos da piada, ele não sabe o que é “água”. Falta-lhe o distanciamento necessário para perceber a beleza que busca e a falta desse distanciamento o impede de escrever o seu segundo romance – o que constitui o seu sintoma.

A beleza não é considerada um tema nobre hoje em dia: colocada sob suspeita de superficialidade, desprezada pela arte contemporânea, que se ocupa do feio e do repelente, acusada de reproduzir a ideologia da classe dominante, ela não possui dignidade suficiente para ser eleita como uma meta. Volta e meia algum militante de causas obscuras posta nas redes sociais um protesto repleto de ódio contra a “ditadura da beleza”, levando-nos a supor que quando admiramos Bach ou Bündchen praticamos a servidão voluntária ao capitalismo. Já Freud, em O Mal-Estar na Civilização, considera a beleza como uma das formas de combater o sofrimento. Ele se refere ao seu caráter “suavemente embriagante”, porém considera que a beleza fornece pouca proteção contra o sofrimento e conclui que a psicanálise não tem muito a dizer sobre ela. Lacan retoma esse comentário de Freud, mas em outra linha: para ele, a beleza é um engodo, uma última barreira que o sujeito ergue antes da pulsão de morte. Daí para os seus seguidores falarem mal da beleza é um passo (para trás, como acontece quando se segue sem pensar).

Na sua jornada noctívaga Jep atravessa as festas, as conversas, as relações mantendo sempre um ar blasé em relação a tudo, até mesmo em relação à morte. A única exceção capaz de abalá-lo é a recordação dessa mulher de quem pouco sabemos, a não ser que foi um amor da juventude. Na cena que representa a sua lembrança, ela se desvela e se recobre suavemente à luz da lua que se alterna com a sombra, replicando o seu gesto. Lacan apreciava muito a descrição do falo enquanto recoberto por um véu, imagem que ele foi buscar nos ritos iniciáticos da Antiguidade, e que ilustra a ideia do significante do desejo que não se pode acessar diretamente. Para Jep essa imagem remete à ideia do significante organizador, do Um que confere valor ao objeto e dá sentido à vida.

O filme de Sorentino provoca em nós essa sensação de suave embriaguez a que se refere Freud. Sua presença na atualidade nos faz pensar numa referência nostálgica à defesa estética contra o sofrimento mencionada em O Mal-Estar na Civilização. Mas ele não se limita a isso: ao mesmo tempo ele nos lembra o triunfo da mediocridade – soberana na mídia, onipresente nos laços sociais – do qual todos participamos. Nesse sentido, a sua própria beleza, suspeita de superficialidade, pode ser dolorosa como o corte da borda aguçada de uma folha de papel, que atinge apenas a superfície da pele, mas secciona as terminações dos nervos.

Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, editor de Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012).

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Revendo Oblivion

Revi Oblivion (Joseph Kosinski, 2013), filme que comentei brevemente o ano passado. Se ainda existe um preconceito que separa os filmes “sérios” daqueles “de entretenimento”, este exemplar da última categoria presta sua contribuição para desfazer essa fronteira. Já se passaram décadas desde que teóricos do porte de um Umberto Eco dedicaram ensaios a esse tipo de obras não nobres, mostrando que sua estrutura aparentemente simples contém elementos da arte “elevada”. É o caso deste filme, em que estão presentes alguns temas clássicos da literatura: o que constitui o humano, o duplo, o amor, a falta e o sacrifício. Sem esquecer, é claro, que a ficção científica, que trata do futuro, já tem um passado importante na história do cinema, com obras como Metrópolis (Fritz Lang, 1927) e 2001, Odisseia Espacial (Stanley Kubrick, 1968), o que deveria bastar para limpar o seu nome.

Baseado numa história do próprio diretor, o roteiro – muito bem elaborado – junta com precisão os fios de uma narrativa onde os fãs de f.c. reconhecerão citações sutis de obras do gênero, como Blade Runner (Ridley Scott, 1982), O Planeta dos Macacos (na sua primeira versão, de Franklin Shaffner, 1968) e o supracitado 2001. A belíssima fotografia em tons pasteis descortina amplas paisagens desertas, planícies desprovidas de vida onde os escombros da civilização se fazem presentes não como ruínas, mas enquanto restos ambíguos que mimetizam a natureza. Esse mundo desinfectado do humano fornece o contraste com o nicho de alta tecnologia em que vivem os personagens. Mas sem exagero: Oblivion é um dos poucos filmes na safra recente em que os efeitos especiais fazem parte do enredo, em vez de constituírem um fim em si mesmos.

De que trata esse enredo? Como já disse em outro texto, do esquecimento, é claro, bem como de sua contrapartida, a rememoração. Jack Harper (Tom Cruise) teve suas memórias apagadas para melhor executar a sua missão no planeta desabitado e ajudar a salvar o que resta da humanidade. Mas ele é atormentado por sonhos e lembranças recorrentes de uma época anterior ao seu nascimento. Sua parceira e esposa, Victoria (Andrea Riseborough), como uma Jocasta do futuro, recomenda que ele foque no presente e não dê atenção a essa história de memórias. Ele, porém, não se conforma, porque pressente que no passado reside o segredo da sua existência.

A tese de que a memória constitui o humano não é uma invenção original de Oblivion – lembremos de Blade Runner, no qual a hybris capitalista consiste não em criar simulacros do humano, mas em prover a sua mercadoria de memórias artificiais. Não importa se essas memórias são possíveis ou não. Há toda uma raça de críticos de ficção científica (que entendem muito de ciência e zero de ficção) dedicada a discutir se os prodígios descritos nessas obras podem ser realizados ou não – discussão tão inútil quando ridícula. A obra de ficção cria a sua realidade e não reproduz uma supostamente existente.

Já em Oblivion não se trata do capitalismo (extinto, como tudo mais), nem de falsas memórias, mas das verdadeiras. Porém não no sentido habitual do termo – a verdade aqui não diz respeito ao factual, mas à verdade do sujeito. Ela evoca o objeto perdido no sentido mais radical e propriamente psicanalítico: o que é perdido sem que jamais tenha sido alcançado pelo sujeito – e mais não se pode dizer sem revelar a história.

Escalar a atriz e ex-modelo ucraniana Olga Kurylenko para interpretar esse objeto é uma escolha mais do que apropriada – sua beleza, que domina todas as cenas em que ela aparece, merece ser justamente qualificada como utópica, na acepção de utopia fornecida por Quevedo (apud Borges): “voz grega que significa não existe tal lugar”. Ou, numa definição contemporânea: lugar ideal para se viver num mundo pós-apocalíptico. Desculpem, eu divago.

Voltando ao assunto: pode-se criticar a premissa açucarada de que se encontra o objeto do amor. Afinal, Lacan ensinou há tempos que é verdade que ao amante falta algo e que o amado possui algo – a ilusão é crer que aquilo que o segundo possui é o mesmo que falta ao primeiro. A sutileza de Oblivion, contudo, vai bem mais além do clichê hollywoodiano: não é simplesmente o sujeito que encontra o objeto que lhe falta, mas é o objeto que ao existir como faltante vai constituir um sujeito ali onde até então não havia um.

Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, editor de Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012).

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NINFOMANÍACA

Cada um tem o seu defeito: o de Lars Von Trier é se levar demasiado a sério. Tomemos como exemplo o filme mais recente que ele cometeu, Ninfomaníaca. Temos ali Charlotte Gainsbourg, mostrando que não herdou do seu pai apenas o sobrenome ilustre e o nariz horroroso. Infelizmente, por melhor atriz que seja, ela não pode fazer milagres e salvar as suas falas deploráveis. O roteiro é tão caricato que nos deixa na dúvida se o diretor estaria zombando de nós, espectadores. As cenas da infância da sua personagem com o pai são de um sentimentalismo tão piegas que só fazem sentido como gozação.

Quanto à sua jornada autodegradante, afinal, o que ele pretende com aquilo? Chocar? Mas será que alguém, além dos espectadores das novelas da Globo, ainda se choca com o sexo no século 21? Os comentários elogiosos que tive a oportunidade de ler associam insistentemente o sexo ao vazio, à angústia, etc. Não fica claro se isso pretende ser uma descrição, um comentário crítico ou uma sentença de cunho moralista. Mas é patético constatar que depois de a cultura ocidental haver superado o cristianismo, depois do surgimento da Psicanálise, da liberação sexual, etc, a grande novidade nesse campo seja um filme que associa o sexo ao vazio e ao sofrimento. O que é isso? Um sermão pós-moderno?

Com um tema como esse, Trier teria, pelo menos, duas opções: na primeira, eliminaria as cenas de sexo e faria um filme com personagens angustiadas comentando o vazio da vida, no estilo chatíssimo de Bergman. Na segunda, enxugaria ao máximo o roteiro, cortaria as reflexões pretensamente profundas e faria um filme erótico memorável sobre as aventuras de uma maluquete neosadiana. Afinal, atriz para isso ele tem, na pessoa de Stacy Martin, que com seu corpo esguio de seios pequenos e seu rosto comprido de olhos claros lembra em tudo a sensualidade de Jane Birkin, mãe de Charlotte.

Mas eu divago. Voltando ao filme, uma derradeira opção seria fazer com que a personagem, no final, revelasse ao seu dedicado ouvinte (e não venham me dizer que ele ocupa o lugar do analista, por favor) que ela inventou aquela história toda. Mas, como disse no início, o diretor se leva muito a sério para ter senso de humor. Talvez o defeito dos seus admiradores seja acreditar nele.

*

Publiquei este texto aqui no Face em fevereiro, logo após a estreia do primeiro filme. Recentemente tive a oportunidade de ler o artigo publicado por Contardo Calligaris na Folha de S. Paulo em 20/3, onde ele afirma que “Ninfomaníaca 1 e 2 é um dos filmes mais tocantes e notáveis que eu vi na última década”. O autor lista as razões para sua apreciação positiva, fazendo referência ao conceito lacaniano de gozo e contrapondo a experiência da personagem com a superficialidade dos nossos dias, em que “[…] a maioria prefere fugir do sexo pela zombaria ou pelo esculacho.” Quer dizer que estamos condenados a ter que escolher entre a mentalidade calhorda dos participantes do Big Brother Brasil e o estilo “I can’t get no satisfaction” da heroína de Trier? A banalidade versus o gozo que corrói o sujeito? Tenho a impressão de que existem mais opções entre esses dois extremos do que sonha a nossa vã psicologia.

Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, diretor da editora Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012) e de Vicissitudes do Objeto (2005), entre outros.

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Antonioni vidente

O frame (ou fotograma, pois o filme é de 1966) de Blow-Up é ilusório. Isolado da cena à qual pertence, ele transmite uma impressão de delicadeza. Ao contrário, o fotógrafo Thomas, vivido por David Hemmings, está muito distante de qualquer traço delicado: grosseiro, explorador, misógino, preconceituoso, racista, oportunista, ele é o oposto do ideal da geração do Flower Power que o filme supostamente retrata.
Não que seja desprovido de sensibilidade artística. Ao contrário: é condição da sua profissão de fotógrafo um contato diuturno com a beleza, que ele reconhece até onde ela é menos esperada, como numa hélice adquirida impulsivamente numa loja de antiguidades. Porém, esse gesto duchampiano se esgota em si mesmo: uma vez tendo se apropriado da beleza, ele não sabe o que fazer com ela – deixa que os entregadores abandonem a hélice encostada num canto do seu estúdio.

Já com as pessoas, Thomas é incapaz da sensibilidade que esbanja com os objetos inanimados. Ele é rude com todos, sobretudo com as mulheres, com as modelos que dele dependem para sua carreira e que ele trata com crueldade nas sessões de fotos e explora fora delas. Com a personagem de Vanessa Redgrave, que aparece nesta cena, ele mantém um joguinho meio boçal porque ela depende dele para conseguir algo. A exceção a essa regra é o tratamento que ele dispensa ao seu editor, a quem paparica a fim de conseguir publicar um livro de fotos “sérias”.

Comentei em outro lugar1 esse personagem contraditório, que destoa da sua época e do seu meio. Afinal, o que Antonioni pretendia com esse personagem “irrealista” para um filme ambientado nos anos 60, em meio aos ideais da contracultura? Seria um exemplo da sua abordagem descomprometida com a realidade? Ou, quem sabe, poderíamos pensar o contrário – que ao criar tal personagem, o diretor exerce um olhar preciso, quase premonitório?
O projeto radical da contracultura era o de uma revolução tanto social quanto “in the head”. Surgida em pleno declínio da função paterna, exaltava os ideais anti-fálicos e preconizava um mundo que não fosse regido por aquelas que eram identificadas como as formas mais explícitas do falicismo: o poder, a disputa, a autoridade, a separação dos sexos (“gêneros”, segundo o jargão do discurso universitário norte-americano, derivado do livro de Stoller, de quem Lacan2, no seu Seminário 18, De um discurso que não fosse semblante, diz ironicamente que ele teria se beneficiado muito se tivesse lido Lacan).

Porém, ainda que o capitalismo não tenha morrido, como sonhavam os mais exaltados – ao contrário, ele parece demonstrar uma extraordinária habilidade em sobreviver às próprias crises e adaptar-se a partir delas – não se pode negar que aquilo que na época da contracultura constituía rebeldia, na atualidade está do lado da norma. Como nota Charles Melman: “Ora, hoje podemos observar que a palavra de ordem da ideologia liberal é assegurar o gozo a todos. E isso se tornou a nova moral. A nova moral é que cada um tem o direito de satisfazer plenamente seu gozo, seja quais forem suas modalidades.”3
A retirada das interdições sociais sobre o desejo, porém, não contribuiu para melhorar a relação entre os sexos. A novidade nesse campo foi a expansão da clivagem entre amor e desejo – que Freud diagnosticava na sua clínica como exclusiva do homem – para o lado feminino. Com um detalhe: a degradação da vida amorosa, parte mais importante dessa clivagem, continua sendo um terreno onde os homens se sentem mais à vontade (talvez pelo caráter todo-fálico do seu gozo). Terreno fértil para a proliferação de todos os tipos de preconceito, para surpresa de quem esperava uma era de aceitação das diferenças.
Essa surpresa tende a aumentar quando se constata que essa degradação hoje em dia não está mais do lado do “inimigo”, e sim do próximo. Por isso todos os chocam com as reportagens4 sobre o assédio sexual entre adolescentes em escolas de classe média-alta (assédio não no sentido da correção política, mas de violência sexual mesmo). Comparado ao estilo cafajeste à laise dos boyzinhos de hoje, o machismo tradicional poderia muito bem passar como a fina flor do cavalheirismo.
Como em outras frentes, o combate da contracultura ao falocentrismo errou o foco. O termo “falocentrismo”, empregado para se referir à teoria freudiana, só pode significar o falo como centro, e não o homem como centro. Se não se trata do órgão, mas do significante, como acrescenta Lacan, o acesso ao falicismo está aberto para os falasseres, independente da sua anatomia (ou alguém ainda repetiria o slogan dos anos 60, de que o mundo seria melhor se os países fossem governados pelas mulheres?).
Porém, além disso, o falo é o significante que fornece o padrão segundo o qual podemos nos entender no que diz respeito ao desejo e ao gozo. A nossa cultura, contudo, parece ser a única em que o único ponto de concordância é que ninguém se entende. Sem referências simbólicas, os sujeitos passam a se guiar por aquelas imaginárias, ditadas pela opinião da maioria, espelho coletivo pelo qual todos se medem. Daí a importância da mídia, bicho-papão das redes sociais, as quais, por sua vez, competem com ela na criação de novos modelos de conduta (ensinando o que devemos comer, vestir, falar, etc.) e novos moralismos (o que devemos aceitar e o que devemos rejeitar).
Nesse mundo de valores que não se ancoram em nenhum ponto fixo, os teóricos do discurso que Lacan denominou universitário não conseguem disfarçar a sua impotência teórica, repetindo que tudo é “líquido”, numa espécie de diarreia intelectual que mimetiza a realidade estudada. Como não poderia deixar de ser, surgem também as velhas vozes que prometem a estabilidade em meio ao caos, seja pregando o retorno a valores conservadores, seja vendendo o gato do socialismo do século 19 como a lebre do século 21.
O que nos conduz de volta a Thomas, o personagem de Blow Up. Imaginado nos anos 60, ele é na verdade uma criatura contemporânea: camaleônico, ele se paramenta com os traços da modernidade para repetir o velho oportunismo, recita os clichês de esquerda para se locupletar como a direita, posa com um discurso do bem para se dar bem. Talvez Antonioni tenha captado com suas antenas de artista que aquilo que estava latente sob a utopia do Flower Power e de Maio 68 era na realidade o avesso dos ideais libertários, da ausência de autoridade. Ao contrário, tratava-se da autoridade desregulada do supereu e sua exigência de um gozo sem limites. “É ao que vocês aspiram como revolucionários, a um mestre. Vocês o terão.”5 – Lacan teve a ousadia de afirmar aos estudantes de Vincennes em 1969.

Notas
1. “Blow-Up ou A crise do sentido”. In: TEIXEIRA, M. R. O espectador ingênuo. Salvador: Ágalma, 2012.
2. LACAN, J. O Seminário, livro 18, De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: J. Z. E., 2011.
3. MELMAN, C. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC, 2003, p. 60.
4. TRINDADE, E. e VINES, J. “Abuso sexual entre adolescentes”, Folha de S. Paulo, 30/4/2013.
5. LACAN, J. O Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: J. Z. E.,

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ELYSIUM E O “TRANSUMANO”

Esqueçam o maniqueísmo do roteiro de Elysium (Neill Blomkamp, 2013) , que parece ter sido escrito por Nicolás Maduro: em num futuro relativamente próximo, os “burguesitos” moram em um paraíso espacial, enquanto “el pueblo” sobrevive como pode na Terra favelizada. Até o idioma é hierarquizado: a secretária de Estado dos cidadãos privilegiados, interpretada por uma Jodie Foster fálica até a alma, fala francês (que na mitologia norte-americana é uma língua de gente metida a besta), enquanto nossa Alice Braga é obrigada a mesclar seu impecável inglês com frases em espanhol (segundo essa mesma mitologia, uma mulher morena tem que ser “hispânica”).

Esqueçam por um instante a excelente atuação de Wagner Moura no papel de um hacker doidão, mostrando (como se fosse preciso) que não nasceu para ficar conhecido como o Capitão Nascimento. O astro do filme é Matt Damon, na pele de um norte-americano “do Bem”, que luta para salvar a própria vida e de quebra a dos desfavorecidos. Para isso, porém, ele tem que implantar cirurgicamente um chip no córtex e um exoesqueleto mecânico.

O mito do cyborg povoa há muito as fantasias dos autores de ficção-científica. A novidade, nas últimas décadas, é encontrá-lo nas fantasias dos cientistas que, estes sim, têm o poder de realizá-las (ainda que não totalmente). Porém, mais esquisito ainda é observar a euforia com que alguns acadêmicos comemoram tais avanços da ciência. Referindo-se a esses autores, Philip K. Dick – escritor de f.c. que é frequentemente citado como o autor que descreveu de forma mais elaborada os seres artificiais – já dizia numa linguagem curta e grossa que achava uma maluquice um ser humano almejar transformar-se em máquina. Não que essa objeção detenha nossos universitários, que “viajam” em especulações acerca do “transumano” (termo pernóstico para a natureza de tais seres híbridos entre o humano e a máquina). O argumento mais comum – utilizado, entre outros, pelo histriônico Zizek – é que, na ausência de uma natureza humana, não haveria fundamento teórico para criticar as tentativas de criar o cyborg.

“Por meio de um curioso sofisma, a caducidade da noção de natureza do homem é aqui utilizada para justificar a apologia do “transumano”, da superação da espécie humana. Uma vez que não se poderia definir de forma universal o que vem a ser o humano, todas as intervenções sobre o homem, inclusive – e principalmente – aquelas que visariam sua transformação num artefato mecânico, num cyborg, seriam justificadas. Futuro totalitário? De modo algum.” (Teixeira, M. “Uma ética do objeto”, In: Vicissitudes do Objeto, 2005)

No filme, o cyborg está do lado do Bem, dos pobres e explorados (como não podia deixar de ser). Talvez seja uma maneira de aceitarmos a sua desfiguração, a sua reificação literal, uma vez que ele se torna uma espécie de armazenador de memória feito de carne. Onde Bill Gates estava que não enxergou a chance de patrocinar a produção desse filme?

Marcus do Rio Teixeira – psicanalista, editor de Ágalma, autor de O Espectador Inocente – Psicanálise, Cinema, Literatura e Música (2012).

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