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Doador Revisitado

Robson de Freitas Pereira

“Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, Uma série de contas-entes ligadas por um fio memória, Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?”

Álvaro de Campos

Atenção! Doador remontado/reconstruído. Preparem seus olhos, seus corpos, suas angústias para nova oportunidade de apropriação. Outra ocasião de renovar a “ética do dom” na passagem da inutilidade ao desejo.

Sabemos que mesmo para quem viu, entrou e passeou pelo corredor instalado na II Bienal do Mercosul, esta será uma experiência nova. Afinal, o Galpão das Tesouras nem existe mais. Um incêndio o levou. O espaço agora é outro, diferente, como será o efeito?

Certamente haverá algo novo, como acontece em toda repetição verdadeira, aquela que vale. A repetição do mesmo só acontece em nosso imaginário, quando queremos fixar alguma identidade, algum sofrimento que dê sentido a nossas vidas. Mergulhados neste oceano de linguagem, às vezes, somos acossados pelo medo, pela vertigem, pela voragem, e tememos não saber nadar.

No Doador trata-se de um mar de objetos. Ou melhor, frutos retirados de um mar de memórias para nos empurrar numa travessia. Duas portas sempre abertas, sinalizando que entrada e saída dependem apenas de onde se está chegando. Um corredor de quase dez metros de comprimento, onde 270 objetos com um sufixo em comum (DOR) espreitam nosso olhar. Qual dor eles tentam conjurar? Não sabemos antecipadamente.

Talvez se trate de lidar com a perda, inicialmente pura perda, que se transforma em falta para impulsionar um desejo. Daí um sentido para revisitar.

Quando Álvaro de Campos fez Fernando Pessoa escrever “Lisbon revisited” havia uma perda em jogo. Tempo da morte da mãe. Mas para fazer o luto, o poeta escreveu sobre sua cidade, com título em outra língua. O inglês, sua língua adotiva, sua pátria, sendo coerente com sua afirmação: minha pátria é minha língua.

“Nada me prende a nada…”.

Outra vez te revejo cidade da minha infância pavorosamente perdida…

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,

E aqui tornei a voltar, e a voltar

E aqui de novo tornei a voltar?”.

O sujeito que retorna não é mais o mesmo que partiu, tornou-se “estrangeiro aqui como em toda parte/ casual na vida como na alma”. Casual e errante, como todo sujeito que elabora uma perda. Como todos nós. Doadores.

A vida já foi tomada como uma errância, uma trajetória determinada pelas circunstâncias. O corredor pode ser uma de suas metáforas, da mesma forma que uma estrada. Um corredor do edifício de nossa infância, ou adolescência, onde íamos visitar os avós, os tios, as namoradas. Estranho e familiar “umheimlich”. Um “déja vu” que se transformou. Já estivemos ali e, simultaneamente, não reconhecemos todos os seus sinais, todos os seus objetos. Nem poderíamos, nem todos eles nos pertencem. Pertencem aos outros “que no son si yo no existo/ los otros que me dan plena existência”, na voz de Octavio Paz. Pertencem também a um lugar Outro, lugar onde habita a palavra dos meus parentes e vizinhos, mas também dos antepassados, que autorizam minha trajetória.

Este Outro, lugar de uma tradição da qual eu me aproprio para poder dispensá-la. Tenho que passar por suas marcas, absorver suas dores, lutar contra seus ensinamentos, saber que eles agem sobre mim, sobre meu corpo, para poder me despedir, me fazer singular.

Como fez Bob Dylan, em “Highway 61 Revisited”. Este que nascido Zimmerman, adotou a estirpe dos poetas ingleses (Dylan Thomas) e fez seu o canto folclórico americano. Revisitou, fez-se hóspede da “Highway 61” que atravessa os estados do Sul. Corredor por onde passaram os menestréis que cantaram as glórias e os sofrimentos da América. Brancos e negros. Quando pensaram que iria instalar-se confortavelmente, Dylan politizou suas letras (Like a rolling stone, Ballad of a thin man) e, suprema ironia, eletrificou o folk. Coisa que pouco tempo depois a Tropicália faria com o rock e a música popular brasileira na época dos Festivais. Ambos recebidos com vaias estrondosas. Apupos estrepitosos de um tabu que desmoronava. Revisitar, diz o dicionário, é também infligir, impor. O novo, às vezes se impõe, a custa de assolar nossas convicções, mostrando o reverso da medalha.

Do dejeto ao desejo

Demonstrar em ato criativo a passagem da inutilidade ao objeto de desejo é uma das funções do doador. Os objetos que ali estão tiveram uma utilidade, um dia. Com o tempo, perderam sua utilidade primeira. Seu valor de uso. Com a inovação tecnológica, com a produção em massa, surgiram outros objetos mais afeitos a exigência de novidade de nossos desejos e ao imperativo de consumo. Com o tempo alguns tornaram-se inúteis, outros dejeto. Gastou-se o valor de troca. Não gozávamos mais com eles. Não serviam ao nosso gozo, nem ao dos outros.

Entretanto, pelo simples fato de seu nome possuir um sufixo comum, uma sílaba, uma palavra puderam mudar de estatuto. Transformaram-se em causa/impulso de um desejo. Coisa difícil nestes tempos de consumo rápido e transações instantâneas. A lógica de nossa cultura determina que os objetos tenham um valor de troca cada vez mais rápido e perecível. Rapidamente transformam-se em lixo biodegradável ou não. Mas estes objetos inúteis podem reverter a sua e a nossa posição, bastou alguém dispor-se a recebê-los a ser receptador das doações, suportar a angústia e indicar que um desejo estava colocado em exercício. Não precisávamos saber sua causa última, afinal no princípio está uma perda, uma falta, um intervalo, uma dor. Se reconhecemos a distância podemos arriscar o salto. Talvez houvesse um desejo de compartilhar, de dar outro destino ao imperativo que obriga a jogar fora as coisas “inúteis”. Revertendo um pouco nosso destino narcísico . Louise Bourgeois escreveu certa vez que os objetos de arte podem ser perfeitamente inúteis frente às exigências pragmáticas. Ela fazia um comentário sobre a coleção de estatuetas que Freud recolhera ao longo da vida. Para espanto dos hagiógrafos que vêem um sentido estrito em cada ato dos gênios, ela ousadamente afirmou que aquela coleção de terracotas não precisava ter nenhum sentido para a psicanálise, ou mesmo para a história da arte. Não precisavam ter contribuído na elaboração de qualquer conceito, assim como questionava até mesmo seu status de obras de arte. Simplesmente podiam estar ali para deleite pessoal de Freud, para dar um alívio no trabalho estafante de escutar o sofrimento das pessoas. Louise Bourgeois sublinhou o valor simbólico das estatuetas de Freud. Este simbólico que se engendra com o real e o imaginário em nossa vida.

O doador cumpre esta função; possibilita reverter o valor de uso, ir além do gozo efêmero com o objeto de consumo, permitindo transformar a angústia do encontro com o dejeto no exercício de um desejo. É uma forma de reinvenção da cerimônia do “potlacht”, onde originalmente eram queimados os bens mais preciosos. Agora são os objetos inúteis que adquirem um outro valor. Um abridor de latas enferrujado (cego), pode nos ajudar a enxergar melhor. Um pequeno apontador de lápis permite nos orientar em direções diversas. Enfim, quem se dispuser a colocar “algo de seu”, a simbolizar a “libra de carne” que Shakespeare marcou como preço de nossa humanidade no “Mercador de Veneza” pode percorrer o corredor, fazer a experiência, enfrentar o “perigo” de uma travessia. Os objetos estão ali, suspensos no tempo e no espaço. Sabemos que o doador é evanescente, mas o tempo da passagem é contingente para relançar nosso desejo e abertura para uma invenção que é própria e compartilhada simultaneamente.

Sobre o autor

Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

* “Doador revisitado” , publicado

in “Apropriações/coleções” , catálogo da exposição.
Curadoria: Tadeu Chiarelli, Edição: Santander Cultural, Porto Alegre, 2002

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O Desejo Obsessivo em “Conto de Fadas”

Marcus do Rio Teixeira

Pode parecer estranho que um psicanalista escolha falar sobre uma obra de Vladimir Nabokov. Afinal, esse escritor russo, naturalizado norte-americano, teve durante toda a sua vida dois grandes inimigos declarados: o comunismo e a psicanálise. Do regime bolchevique ele abominava a tirania que o havia obrigado, juntamente com sua família, a fugir da União Soviética para nunca mais voltar, e a massificação ideológica que reduziu a vida social e cultural da sua terra natal à mediocridade. Da psicanálise, sobretudo norte-americana, que era a que ele conhecia, era a estreiteza de visão capaz de reduzir uma obra a um punhado de chavões que ele não aceitava. Hoje, após a queda dos regimes do Leste europeu e após a crítica de Lacan à psicanálise norte-americana, é preciso reconhecer que as críticas de Nabokov à revolução soviética eram fruto de um conhecimento de perto da realidade do seu país, assim como os seus comentários ácidos contra a psicanálise deveriam ser referendados por todo analista contemporâneo, ou quando nada por aqueles familiarizados com o retorno a Freud de J. Lacan.

A obra que trago a vocês hoje é um conto, publicado originalmente em russo em 1926 (a obra literária de Nabokov foi escrita em russo até 1938) e traduzido para o inglês com revisão do autor para uma edição americana em 74. Devido ao objetivo da nossa intervenção torna-se necessário revelar o seu enredo e prejudicar, infelizmente, o prazer da leitura daqueles que ainda não o conhecem, revelando o seu (interessantíssimo) final.

Somos apresentados inicialmente ao jovem Erwin, habitante de uma cidade européia (muitos dos personagens de Nabokov nessa fase da sua produção literária são imigrantes russos como ele ou europeus). Acerca de Erwin, somos informados que é “morbidamente tímido”, ou seja, que tem uma forte inibição que o impede de aproximar-se das mulheres. Ele tem, contudo, uma fantasia, e o autor repete no início do conto o mote, que retornará mais adiante: “Fantasia – o frêmito, o êxtase da imaginação irrefreada!” Erwin mantém um harém imaginário, constituído pelas mulheres desejáveis que ele encontra na rua e “coleciona”. E o autor acrescenta: “Como era feliz o nosso Erwin (…)!” Uma tarde, enquanto dedica-se ao seu passatempo favorito, observando e “colecionando” as mulheres enquanto descansa na mesa de um café, Erwin cede um lugar na sua mesa a pedido de “uma senhora alta, de meia idade” que é também descrita como “corpulenta”, com “um rosto emplastrado de pó-de-arroz e traços algo masculinos”. Essa senhora revela ser capaz de ler a sua mente. Trata-se na verdade, do Diabo em pessoa, que, como ele revela, costuma renascer três ou quatro vezes a cada dois séculos, encarnado num ser humano. O mesmo Diabo comunica então que vai morrer em breve e está disposto a realizar o desejo do jovem Erwin, entregando a ele todas as mulheres que ele escolher entre o meio-dia e a meia-noite do dia seguinte. Acrescenta que fará isso sem esperar nada em troca: “Não preciso de sua alma para nada”. Antes, ela havia dito “Gostei de você imediatamente. Essa timidez, essa imaginação audaciosa”. Há porém uma única condição: as escolhidas têm de perfazer no total um número ímpar. Os leitores poderiam pensar que o final do conto pode ser previsto desde já: o personagem não conseguirá chegar a um número ímpar. Essa seria a solução que um escritor mediano encontraria; não é o caso, entretanto, de Nabokov, que nesse inicio da sua carreira literária já apresentava as marcas da sua genialidade.

Acompanhamos então o despertar de Erwin na manhã seguinte, não sem um irônico comentário do autor sobre a suposição de que o seu encontro com o Diabo havia sido um sonho: “Esse recurso retórico é muito comum nos contos de fadas e, como no contos de fadas, nosso jovem cedo descobriu que estava errado”. Logo após o meio-dia ele inicia a sua lista, ao perceber uma jovem de costas da qual admira a curva da nuca, e que ao voltar-se para ele emite o sinal combinado pelo Diabo como indicativo da sua inclusão no harém. Mais quatro mulheres adiante, Erwin reencontra o Diabo, que lhe adverte: “Excelente. Número ímpar. Eu o aconselharia a parar por aí”; e combina um encontro à meia-noite numa casa especialmente construída para a realização do seu desejo. Ele retorna à sua casa, mas, insatisfeito com a pequena quantidade do seu harém, parte novamente em busca de outras para ampliá-lo. Assim é que, algumas horas e algumas mulheres depois, ele exclama: “Onze horas e onze mulheres. Acho que chega”. Mas um encontro casual com um senhor acompanhado pela sua filha adolescente precipita o sinal de que o harém aumentou para doze. É um momento tenso para Erwin, que tem que encontrar uma mulher que desperte o seu desejo em meia hora. Mas ele se consola dizendo: “Tenho certeza de que encontro outra (…) Talvez seja a melhor de todas” (grifo nosso).

E de fato encontra. Uma jovem por quem ele é inexplicavelmente atraído, que passa por ele rapidamente, e a quem ele segue desesperadamente, na esperança de ver-lhe o rosto. Nabokov prolonga o suspense até o final, quando o personagem finalmente consegue alcançar a moça e ver-se face a face com ela poucos segundos antes da meia-noite. “Virou-se para ele e, na luz que o lampião lançava através das folhas verde-esmeralda, Erwin reconheceu a moça que pela manhã brincava com o cachorrinho preto e felpudo na alameda de cascalho – e imediatamente relembrou, imediatamente compreendeu todo o seu charme, seu terno calor, seu esplendor incalculável”. A 13ª revela ser, na verdade, a 1ª da lista, o que faz com que esta perfaça um total par. É o fim da linha para Erwin, que encontra o Diabo esperando no carro e despede-se, rumando para casa.

Além do surpreendente e irônico final com que nos brinda, Nabokov nos deixa algumas pistas para compreendermos o desejo do seu mal-sucedido personagem. Em primeiro lugar, o que atraiu verdadeiramente Erwin na jovem que passava, e da qual não pôde ver o rosto até o encontro fatídico à meia-noite? Deixemos a palavra com o autor: “Só viu pelas costas, e não saberia explicar de onde vinha o desejo tão lancinante de ultrapassá-la para ver seu rosto. É claro que se podem escolher palavras ao acaso para descrever-lhe o porte, o movimento dos ombros, a silhueta do chapéu – mas para quê? Alguma coisa que transcendia os traços visíveis, uma espécie de atmosfera especial, uma excitação etérea, mantinha Erwin fisgado”. E mais adiante: “O que será que o atraía? Não seu modo de andar, a forma de seu corpo, mas algo mais, alguma coisa fascinante e insopitável, como se uma corrente de alta tensão a circundasse: simples fantasia, quem sabe, o frêmito, o êxtase da imaginação (…)” E temos aqui mais uma vez o mote com o qual o autor introduz o conto.

Contudo, perguntamos, o que atraiu Erwin a primeira vez que viu a moça, no início da sua caçada? Voltemos a esse momento: “Em meio a esse variegado cenário, Erwin atentou para uma moça vestida de branco que se acocorava para pentear, com dois dedos, um gordo e peludo filhote de cachorro com verrugas na barriga. A cabeça inclinada deixava a descoberto a parte de trás de seu pescoço, exibindo o ondulado das vértebras, a penugem alourada, a terna depressão entre as espáduas, enquanto o sol, furando as folhagens, encontrava fios dourados em seus cabelos castanhos”. Ou seja, a primeira vez que a vê e que interessa-se por ela, escolhendo-a como a primeira da sua lista, Erwin a vê de costas. Da mesma maneira, portanto, como a vê ao reencontrá-la pela 2ª vez, no afã de perfazer um número ímpar e sente-se novamente atraído por ela. Atração esta, como vimos, para a qual não encontra nenhuma explicação plausível.

Sentimo-nos autorizados, portanto, com licença de Nabokov, a supor que Erwin sabia que já conhecia a moça, que esta já fazia parte da sua lista. Sabia portanto que ao escolhê-la como a 13ª estaria perdendo todas as outras (além dela própria). Que Erwin inconscientemente sabia que a última da sua lista era de fato a primeira é atestado pelas diversas referências ao caráter inefável, impreciso, nebuloso daquilo que nela o atraiu, ao contrário das outras, para as quais ele tem uma justificativa bastante materialista para incluí-las na sua lista. Nesse ponto ele estava certo quando disse que encontraria no final “a melhor de todas”. Para ele a 13ª, a última da lista, era de fato a primeira, a que inaugura a lista abrindo a possibilidade da realização do desejo e ressurgindo no final para confirmar a sua qualidade de objeto do desejo impossível, fechando todas as possibilidades e fazendo ruir toda a lista. É essa uma, essa mulher de carne e osso, que ele não pode ter, e que é preciso dar um jeito de perder para que possa continuar tendo todas no seu harém de fantasia. É o providencial desmoronamento da sua lista que garante que o seu desejo seja mantido, mantido enquanto impossível de ser realizado. E que garante também que o objeto do desejo seja mantido a uma distância segura, que só possa ser alcançado na fantasia. Uma variante polissêmica permitiria tomar esse encontro com a 13ª como uma forma da perda de interesse pelo objeto no momento em que este é alcançado. Quando Erwin alcança a moça, ela já não serve mais; qualquer uma, nesse momento, serviria, menos ela.

Erwin trabalha, portanto, pelo fracasso da realização do seu desejo. Lembremos que, no início do conto, quando ele nos é apresentado como um jovem “morbidamente tímido”, colecionando mulheres num harém de fantasia e esquivando-se delas na realidade, o autor ao mesmo tempo comenta: “Como era feliz o nosso Erwin (…)”. Feliz ele era na situação inicial, na qual mantinha, através da sua fantasia, o seu desejo suspenso da sua realização. Ao que parece a única perturbação nessa situação de felicidade é o aparecimento desse Diabo generoso e benfazejo que ele não invoca e que lhe oferece a realização da sua fantasia sem cobrar absolutamente nada em troca. Talvez, se ele tivesse exigido a sua alma como pagamento, as coisas se tornassem mais fáceis para Erwin, mas nem isso lhe é cobrado. A realização da sua fantasia lhe é oferecida gratuitamente, e a partir daí ele vai tentar evitá-la a todo custo. E o único recurso que lhe resta para isso é a exigência banal do número ímpar de mulheres. Mesmo para isso é preciso contornar a ajuda desse solícito Diabo, que intervém no meio da busca para advertir-lhe mais uma vez da necessidade de manter um número ímpar.

É interessante, aliás, que Nabokov tenha encontrado para o Diabo uma encarnação feminina. Esse Diabo generoso e benfazejo é uma mulher, e não somente uma mulher, mas uma coroa alcoviteira. Propiciadora desinteressada da realização da fantasia do personagem, ela chega a dizer em certo momento que “sabe” que Erwin quer incluí-la no seu harém, para acrescentar logo em seguida que isso é apenas uma brincadeira. E o próprio Erwin divaga, a certa altura da sua busca: “Certamente, ela vai ver tudo escondida, e por que não? Dá um toque ainda mais especial”. Erwin se coloca, portanto, na sua fantasia, a serviço do gozo perverso, voyeurista, desse Outro.

Esse Outro generoso, poderíamos qualificá-lo de maternal, não pelo fato óbvio de ser uma figura feminina mais velha que o personagem, nem tampouco pela sua solicitude em relação a este, mas porque o induz à demanda. De fato, na sua primeira aparição, o Diabo, como vimos, não é invocado, algo pouco comum nos relatos literários em que aparece. Mesmo na conclusão do seu pacto Erwin nada pede, tudo lhe é oferecido. É preciso então que ela faça uma segunda aparição, inteiramente desnecessária, para perguntar a Erwin: “Como vão as coisas?” E nesse momento Erwin chega finalmente a fazer uma demanda: “Seria bom que no começo elas estivessem vestidas, quer dizer, que apareçam exatamente como estavam quando eu as escolhi. E que sejam muito alegres e carinhosas”. Está feita a demanda, que o Outro materno prontamente aceita.

Esse Outro obsceno, facilitador de sexo e supostamente voyeurista, que induz o personagem a tomar o seu desejo transformando-o numa demanda, quer também incluir-se na lista – em que lugar? antes da primeira? (Freud vê na etiologia da neurose obsessiva uma satisfação sexual precoce). Cabe ressaltar, também, que a morte desse Diabo feminino no final do conto é inteiramente desnecessária, do ponto de vista estritamente literário. Em termos da narrativa, a saída de cena do Diabo após o não-cumprimento da sua exigência do número ímpar poderia perfeitamente dispensar o recurso à sua morte. O obsessivo, como sabemos, mantém um flerte constante com a morte, seja através da agressividade que dirige ao outro (ao semelhante), seja por vislumbrá-la como único limite possível às suas infinitas dúvidas e cogitações. Erwin não pode ter uma mulher porque deve esperar a 2ª da lista e a seqüência; não pode ter cinco, porque esse número não o satisfaz; tampouco pode ter onze, porque surge uma 12ª para atrapalhar; finalmente não pode ter treze porque a 13ª é, de fato, a 1ª. Além do próprio caráter metonímico do desejo, o que essa lista revela é o movimento circular, repetitivo, do desejo obsessivo, no qual a lista infinita de objetos nunca chega a um total definitivo, mas deixa sempre o sujeito na carência. Só a morte, ele acredita, pode por fim a esse círculo vicioso de um desejo estéril e repetitivo. E sobre essa Diaba que vai recair, nesse caso, a agressividade mortífera. Convenhamos, alguém poderia lembrar-nos que a nossa interpretação nesse ponto seria excessiva, pois não é Erwin quem mata o Diabo. Mas, enfim, como nos lembra Nabokov, é só um conto de fadas. * Texto apresentado no 1o Congresso Internacional do Colégio de Psicanálise da Bahia, em julho de 96 e publicado nos Anais do Congresso, Urânia Tourinho Peres e Ma Tereza Ávila Dantas Coelho (orgs.), Salvador, 1998. Referência 1) “Conto de fadas”. In Perfeição, S.P.: Cia das Letras, 1996.

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Elogio da Tradução

Marcus do Rio Teixeira

Saboreei numerosas palavras.
Jorge Luis Borges

Sempre na berlinda, injustamente assimilada à traição, a tradução é lembrada, na maioria das vezes, numa comparação desfavorável com o original e, bem mais raramente, como merecedora de um elogio. É o mestre Borges, contudo, quem agradece à sua ignorância do idioma grego o contato mais aprofundado com a obra de Homero através das múltiplas versões de múltiplos sentidos. Até o mais rigoroso ? ou mais pedante ? dos lacanianos, na solidão do seu consultório, tendo de optar entre a leitura de um texto de Lacan no original e uma boa tradução, por certo preferirá esta última, cotejando-a eventualmente com o texto de origem para dirimir dúvidas em passagens controversas. De fato, a visão mais aceita hoje em dia é aquela que considera a tradução não apenas uma mera cópia da obra em outro idioma, mas um novo trabalho de criação (entre nós, Haroldo de Campos prefere falar em transcriação), que permite ao leitor experimentar um novo prazer de leitura.

Estamos falando, neste caso, do texto literário. O texto científico situa-se num registro totalmente diverso, por colocar em primeiro plano a necessidade de transmitir uma determinada informação e pelo apagamento do sujeito que o discurso científico preconiza. Já o texto psicanalítico, como não podia deixar de ser, herda da psicanálise um estatuto mais complexo; se por um lado tem em comum com o texto científico a transmissão de uma informação e a busca da exatidão teórica, ele deve contar sempre com a irrupção do sujeito e com a equivocidade do significante ? o que, por outro lado, o aproximaria do texto literário. Deixo a tarefa de conciliar estas contradições a cargo dos apreciadores daquela fase de Lacan em que ele acreditou poder trazer algo do rigor da matemática à teoria psicanalítica.

A minha experiência profissional, de início como psicanalista e leitor, em seguida também como editor, levou-me a estudar e comparar ? e, hoje em dia, a revisar ? as traduções dos textos psicanalíticos para o português. Talvez seja a partir daí que eu me permita dizer duas ou três coisas sobre esse tipo de tradução; em primeiro lugar sobre o aspecto ?literário? ou estilístico, em seguida, sobre o aspecto ?científico?, ou, melhor dizendo, teórico.

A preferência pessoal fala sempre mais alto quando se trata do primeiro aspecto e, quanto a mim, esta recai sobre a tradução que enfatiza a língua de chegada ? no nosso caso, o português ? e prioriza a fluência, sem nos dar a impressão de um texto escrito por um estrangeiro que não domina bem nosso idioma. Daí a minha impaciência com os galicismos, que me parecem um traço de subserviência à língua estrangeira ou mesmo um sinal de preguiça mental, como os anglicismos dos adolescentes ?micreiros? que dizem deletar (recentemente dicionarizado, inclusive) por não saberem traduzir to delete por apagar, suprimir, cancelar, eliminar, etc. Algumas traduções de textos lacanianos parecem ter sido escritas num novo dialeto que mistura os vocabulários e as sintaxes do português e do francês.

No seu ABC da literatura, Ezra Pound alerta sobre a deterioração da língua, cujos exemplos mais flagrantes seriam a linguagem da política e, atualmente, da mídia. De fato, ambas são exemplos dessa linguagem rasa, burra, de vocabulário escasso e sintaxe empobrecida que, para Pound, representa o estágio mais avançado do estiolamento do idioma de um povo. Como medida preventiva e curativa ele propõe o seu paideuma, uma seleção literária do que os escritores produziram do melhor, feita para ser consultada com facilidade pelas novas gerações. O empreendimento crítico poundiano serve para nos lembrar que aquele que aspira ser um bom tradutor de textos psicanalíticos tem mais a aprender freqüentando as obras dos grandes escritores do nosso cânone do que compulsando as obras completas de Freud e Lacan.

Isso nos conduz ao segundo aspecto da tradução do texto psicanalítico. Evidentemente, este diz respeito a uma disciplina que compreende, entre outras coisas, uma prática clínica e um corpo teórico bem elaborado, com todo o aparato conceitual que lhe é específico. Não podemos, portanto, tratar uma tradução desse tipo com critérios puramente literários. Há de se estabelecer, por exemplo, um acordo quanto à tradução dos conceitos, o que não é um problema pequeno considerando a babel das versões existentes hoje em dia. Imaginem, só por divertimento, uma mesa redonda sobre a Verleugnung composta por quatro ou cinco analistas: o público poderia ter a surpresa de ouvir cada um deles referir-se ao tema da mesa com um nome diferente!

Algumas vezes, encontro em artigos e traduções recentes de autores brasileiros palavras-valise e conceitos lacanianos citados no original. Esse tipo de procedimento me parece absolutamente injustificável, uma vez que já existem há vários anos ótimas traduções para tais termos, muitas vezes obra de tradutores anônimos. A merecida consagração dessas traduções é o resultado de um longo processo de experimentação e aprimoramento, até se chegar a um termo que ganhe aceitação na comunidade analítica. O estudo desse processo pode ser extremamente útil para se compreender e elaborar a tradução contemporânea dos conceitos lacanianos.

Tomemos, por exemplo, o caso de parlêtre. Nos anos 70, tentou-se impor o uso de falesser, que não pegou, é óbvio, por ser demasiadamente marcado pelo sentido de morte, não presente no original. De circulação mais restrita, falente não ganhou adeptos, provavelmente devido à sua esquisitice. Fala-ser foi sem dúvida a opção mais pobre, por desdobrar de modo didático o neologismo lacaniano. Por fim, falasser consagrou-se como o termo preferido pelos autores e leitores; uma opção inteligente, pois traduz com perfeição o neologismo juntando duas palavras apenas com a duplicação do ?s?, para impedir que este soe como um ?z?, como observa Francisco Settineri. Note-se, entretanto, que ainda ficou de fora o sentido de letra (lettre), presente no original.

Há também uma espécie de ?subcategoria? das expressões lacanianas cuja especificidade eu gostaria de comentar. Sua característica principal é a de produzir homofonias perfeitas em relação a outros termos, as quais são impossíveis de serem distinguidas pela escuta. Essas expressões só podem ser percebidas, só podem ?surgir? a partir da leitura. Elas foram criadas preferencialmente para a escrita, em vez da fala, portanto. Sem forçar muito a memória, me ocorrem dois exemplos: sinthome e hommossexuel, cujos pares homófonos, é claro, são symptôme e homossexuel. A minha opinião é que, em se tratando de palavras que só se distinguem na escrita, sua tradução deveria privilegiar igualmente o jogo da escritura e da letra, em vez de buscar uma diferença pela sonoridade. É por isso que para traduzir sinthome me parece mais justo acrescentar apenas a letra ?h? (sinthoma), abandonando alternativas mais complicadas como sinthomem, que privilegiam o significado e não o significante.

Quanto a hommossexuel, a dificuldade de tradução é ligeiramente maior. No Seminário 20, Lacan referiu-se às histéricas como hommossexuels, não por serem lésbicas, mas por ?faire l´homme?. O neologismo lacaniano é extremamente sutil: a letra ?m? duplicada remete a homme (homem), em vez de homo (semelhante). O termo passou batido pelo tradutor do Seminário, que tascou homossexuais mesmo. Há algum tempo tomei conhecimento de uma tentativa de tradução como homemsexual. A opção me parece um tanto pesada e não faz jus à sutileza do original. É obvio que, se assim o quisesse, Lacan poderia muito simplesmente ter dito hommessexuel; se ele não o fez, se preferiu o recurso mínimo da repetição de uma letra, creio que deveríamos respeitar essa opção. Há alguns anos eu mesmo sugeri a tradução homomsexual, colocando o ?m? a mais no final, como em homem no nosso idioma. Ainda não tenho certeza, contudo, de que esta tradução seja satisfatória.

Problemas como esses me levaram a propor um esboço de um Glossário geral das traduções consagradas dos conceitos freudianos e lacanianos no Dicionário de Psicanálise ¾ Freud & Lacan, que é a nossa versão brasileira do Dictionnaire da Association Lacanienne Internationale. Trata-se de um work in progress, como o próprio projeto do Dicionário, aliás. Para mostrar que o próprio autor destas mal traçadas (e bem digitadas) linhas não é ele próprio imune aos equívocos da tradução, cito um problema mais recente com o qual me deparei. Ao revisar uma tradução de Letícia Patriota sobre Le graphe de Lacan, achei que poderia substituir grafo por gráfico, por julgar o primeiro um neologismo e um galicismo (vide a minha implicância com os galicismos). De fato, grafo, como substantivo masculino, não consta do nosso Aurélio, nem do velho Caldas Aulete, nem sequer do Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antonio Geraldo da Cunha, só para citar alguns. Além disso, a etimologia de gráfico é a mesma de graphe, ambas remetem à grafia.

Erro meu: grafo é palavra da língua portuguesa, do vocabulário matemático, e consta, por exemplo, da edição de 1998 do Michaellis. O que me leva a concluir que o trabalho da tradução, além de ser infindável – o que talvez não seja uma característica exclusiva sua – não nos impede, pela sua prática, de cometermos equívocos banais. E que talvez seja o amor pelo texto que nos leve a persistir em busca de uma tradução tão perfeita quanto impossível.

Referências bibliográficas

Caldas Aulete. Dicionário
CHEMAMA, Roland et allii. Dicionário de psicanálise ? Freud & Lacan, vol.1. Salvador: Ágalma, 2004 (2a edição).
CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20, Mais, ainda… Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 19
POUND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Cultrix, 1973.

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Alcance e Limites da Psicanálise no Início do Século

Marcus do Rio Teixeira

Pretendo traçar em linhas gerais um painel acerca do alcance (no singular) e dos limites (no plural) da prática analítica no final do século 20 e arriscar, talvez, algumas especulações para o início do século 21. Para abordar esse tema é necessário, a meu ver, falar da inserção social da prática psicanalítica. De que modo a psicanálise é assimilada ou rejeitada na sociedade contemporânea? De que modo a teoria psicanalítica é aceita ou discutida pelos pensadores e cientistas?

Como exemplo dessa inserção, colhi um editorial do jornal Folha de São Paulo, do dia 10.set.1995 intitulado ?Pílulas ou psicanálise?? e que trata da polêmica psicanálise versus psicofármacos. O texto, bastante cauteloso e moderado, não deixa de frisar que os dois tratamentos ?não são excludentes?(sic), e que a psicanálise ?pode até mesmo ser mais eficiente, no sentido em que procura a causa individual de um mal individual de uma pessoa única?(sic). Ressalta, porém o caráter de ?elite? do tratamento analítico e lembra que ?As drogas, mesmo considerando que muitas delas sejam ainda caras, possibilitam o relativo alívio de sintomas num período mais curto que o psicanalítico?. Para concluir que: ?O avanço da psicofarmacologia abre a perspectiva de que a enorme massa de excluídos que hoje trata seus traumas a cachaça e espasmos de violência tenha enfim acesso a um método científico de terapia.?

Sinceramente, não posso dizer que compartilho da esperança dos editores da Folha de São Paulo de que a bilionária indústria farmacêutica se preocupe com a ?enorme massa de excluídos?, embora não negue o ?relativo alívio de sintomas?. Prefiro lembrar, em tom de brincadeira, uma novela do famoso escritor de ficção científica Philip K. Dick, autor do livro que inspirou o roteiro do filme Blade Runner. Na novela em questão, intitulada The simulacra[O simulacro], a história se passa nos Estados Unidos, num futuro não muito distante. Nessa época, o congresso americano, pressionado pelo lobby da indústria farmacêutica, vota uma lei proibindo a prática psicanalítica em todo seu território e punindo os infratores com a prisão.

Bem, saindo um pouco do clima paranóico das novelas de Philip K. Dick, caberia perguntarmo-nos: Por que a psicanálise, cem anos após a sua invenção, ocupa as páginas dos jornais como objeto de um questionamento sistemático, e até mesmo belicoso, por parte de alguns cientistas? O que faz com que essa teoria e essa prática que tanta influência exerceram, não apenas sobre o meio médico, mas sobre as letras e as humanidades durante o século 20, chegue às vésperas do século 21 sob a acusação de charlatanismo?

Não creio que essas críticas feitas por cientistas ? sobretudo norte-americanos ? , que pretendem explicar as idiossincrasias da conduta humana a partir da genética ou de teorias pseudo-evolucionistas, sejam produtos apenas da má-fé. Mais do que o ódio à psicanálise, sua abordagem padece de um gigantesco equívoco. O erro de abordagem consiste em pressupor que ambas as práticas, a psicanalítica e a psicofarmacológica, pertenceriam ao campo da ciência, e que, enquanto tal, seus métodos e progressos poderiam ser comparáveis. O que acontece, entretanto, é que a invenção freudiana inaugurou um novo campo, que não é mais aquele da ciência, que já existia antes deste, e do qual Freud foi obrigado a tomar emprestadas algumas noções no momento da construção de sua teoria. Tampouco pertence ao campo da filosofia ou da religião. Quer se aceite ou não, o edifício teórico e a prática clínica inventados por Freud sob o nome de psicanálise constituem um campo distinto, inaugural, que não pode ser assimilado àqueles que preexistiam a ele.

Ao introduzir nos anos 70 a noção de discurso como promotor de um laço social, Jacques Lacan possibilitou uma nova abordagem dessa questão. O discurso psicanalítico, surgido num momento histórico no qual os laços sociais existentes permitiram o avanço da ciência, é deste tributário, ao mesmo tempo em que o ultrapassa, ao colocar o sujeito numa nova configuração, ressaltando o objeto que causa o seu desejo. Não haveria incompatibilidade, e sim diferença de campos entre a psicanálise e a ciência. Os questionamentos acerca da eficácia e da cientificidade da psicanálise não enxergariam, portanto, que ela não deixa de ser científica por uma deficiência, mas sim pela própria constituição de seu discurso. O que não a impede de ter uma enorme eficácia em inúmeros aspectos. Eficácia, contudo, nem sempre mensurável por meio de critérios científicos.

Haverá, porém, interesse real nessa eficácia por parte da sociedade contemporânea? Ou a eficácia que realmente interessaria nos dias de hoje seria aquela do ?relativo alívio de sintomas? para que o indivíduo, sem perder tempo com a causa do seu sofrimento, possa manter-se sempre apto a produzir e, sobretudo, a consumir? Haverá lugar para uma prática que visa confrontar o sujeito à sua falta constitutiva em um tipo de sociedade que oferece a todo momento uma profusão de objetos supostamente capazes de colmatar esta falta? Colocadas as questões desta forma, o ponto crucial parece ser muito menos uma diferença entre critérios de eficácia do que entre posições éticas.

A psicanálise seria então a única voz destoante no coro dos contentes? Não totalmente. Aqui e ali surgem críticas de diversos setores que consideram que determinadas pesquisas, sobretudo na área da genética e da reprodução humana, padecem de graves falhas éticas, que poderiam conduzir a desvios, tais como a eugenia. Na tentativa de conter tais abusos, o termo bioética tem sido mencionado com freqüência nos últimos tempos.

Esse tipo de preocupação, embora certamente louvável, não me parece entretanto tocar o cerne do problema. Não creio que esses desvios devam ser considerados como tais, ou seja, uma deturpação ou degenerescência do discurso científico, mas sim uma conseqüência necessária do seu próprio progresso. É nesse sentido que Lacan, no seu seminário 17, O avesso da psicanálise, frisa que no discurso científico o saber sofre um imperativo que faz com que ele avance sempre, o que impele o sujeito na direção de saber sempre mais, sem se deter em nenhum obstáculo, e sem tampouco refletir sobre as conseqüências desse avanço. ?A ciência não tem nenhuma espécie de idéia do que ela faz?, diz ainda Lacan numa entrevista de 29 out. 1974.

À medida que é próprio do discurso científico promover o constante avanço do saber e desconsiderar toda e qualquer barreira, esse movimento fatalmente o leva a colidir com posições que lhe interpõem barreiras fundadas na ética. Não que o discurso científico seja aético; todavia, pelo menos em sua fase atual, ele constrói uma ética própria, bastante diversa daquela preconizada por outros setores da sociedade, e que alguns preferem denominar de ética do real. Esta ética visaria um domínio cada vez maior do real, e, dessa forma, não entraria em conflito com o imperativo do avanço do saber, mas, ao contrário, o sustentaria.

Do ponto de vista de tal ética, a eugenia, por exemplo, seria perfeitamente aceitável e coerente com os seus princípios, uma vez que visaria uma melhoria da espécie; de um ponto de vista que privilegia o real da biologia, não haveria por que não buscar o aperfeiçoamento do organismo. Essa prática só é reprovável para aqueles que, cientistas ou não, se pautam por uma ética que não se fundamenta no real da biologia, mas sim nos valores provenientes de outros campos, por exemplo, daqueles oriundos da tradição.

Do mesmo modo, se compreendemos o nosso psiquismo como a somatória de fatores bioquímicos, e toda angústia, todo sofrimento psíquico, como um desequilíbrio desses fatores, é perfeitamente coerente prescrever os psicofármacos como a solução universal para esse tipo de sofrimento.

Disse anteriormente que uma ética que não se fundamentasse no real seria procedente de um registro estrangeiro. É o caso de nomeá-lo: o simbólico. A relação da ciência com esse registro parece-me complexa e problemática. Se, por um lado, no caso da matemática (e da lógica, em outro campo), poderíamos falar de uma hiper-simbolização do real, em contrapartida, para a biologia, por exemplo, parece haver a busca de um contato direto com o real, sem a mediação do simbólico e do imaginário. Haveria algo semelhante a um voto de prescindir da linguagem, almejando alcançar uma linguagem do próprio real, escrita no livro da natureza, o qual tratar-se-ia apenas de saber lê-lo. Falar de sujeito, nesse contexto, é completamente inútil. O que está em questão doravante não é um sujeito, mas sim as alterações no real do organismo a nível celular ou molecular.

Essas concepções, por sua vez, não deixam de ter influência na cultura de nossa época. Cabe lembrar aqui a célebre afirmação feita por Lacan na mesma entrevista antes citada: questionado acerca do ?triunfo da psicanálise?, ele respondeu ser a religião aquela que triunfará; a psicanálise, por sua vez, sobreviverá ou não.

Por que a religião triunfará? E o que isso tem a ver com o avanço da ciência? Na análise de Lacan, o avanço da ciência não produz nenhum sentido, ou seja, suas conseqüências materiais, embora tangíveis, não são assimiláveis pelo sujeito (lembremos que, para Lacan, o sentido situa-se na junção do imaginário com o simbólico). O sujeito tentará preencher esse vazio de sentido por outras vias diversas da ciência, sendo a religião uma via privilegiada para isso, dado o seu know-how em fornecer sentido para a existência humana. O crescimento do misticismo e dos fundamentalismos cristão e muçulmano testemunham essa tentativa demasiado humana de preencher o vazio de sentido de um mundo dominado pelo progresso tecnológico, para a maioria das pessoas, um mundo simplesmente incompreensível e assustador.

Neste ponto, gostaria de abordar uma questão interessante, que parece ressaltar uma aparente proximidade entre o discurso científico e o discurso psicanalítico. Trata-se da situação do sujeito frente à determinação da sua vida, sua conduta, suas emoções, por causas que são alheias à sua vontade. Para a ciência, o ser humano é produto de fatores (genéticos, por exemplo) que determinam os mais elementares componentes da sua conduta; que determinam, por exemplo, sua sexualidade, sua propensão para o uso de certas substâncias tóxicas ou para desenvolver certas síndromes psicopatológicas. O sujeito, para a psicanálise, não é menos assujeitado à determinação de fatores alheios à sua vontade consciente. No caso, estaríamos falando de uma determinação inconsciente para suas ações e escolhas, mesmo as mais íntimas, ou seja, justamente aquelas em que cada um se reconhece.

Que diferença haveria entre a determinação (genética, biológica) sofrida pelo sujeito no discurso científico e a determinação inconsciente no discurso analítico? A diferença crucial é que, no primeiro caso, a determinação exclui a responsabilidade do sujeito. Quando se afirma que alguém é toxicômano ou alcoólatra, homossexual ou heterossexual, deprimido ou hiperativo devido ao seu código genético, tal afirmação pressupõe que ele é isento de responsabilidade sobre essas condutas, que ele é tão responsável por elas quanto o é pela cor de seus olhos.

Em contrapartida, para a psicanálise, a determinação inconsciente não exime o sujeito da responsabilidade pelos seus atos, pelas suas escolhas. Esse é o paradoxo que nos desafia no dia-a-dia da nossa clínica, onde os analisantes queixam-se de um sofrimento cujas origens freqüentemente são anteriores ao seu próprio nascimento, mas que devem assumir em seu próprio nome se quiserem produzir alguma modificação no seu sintoma.

A assunção da responsabilidade pelos seus atos está presente também no herói da tragédia de Sófocles. Movido por forças alheias à sua vontade, Édipo é levado ao parricídio e ao incesto. Contudo, não se limita a lamentar seu destino (que já fora previsto pelo oráculo antes mesmo do seu nascimento) e a maldizer os deuses; ele reconhece a si próprio como um criminoso, alguém que infringiu as leis da Cidade, mesmo sabendo que foi levado a praticar seus crimes como marionete dos deuses. Nesse sentido, Édipo é considerado por alguns pensadores como o primeiro herói moderno avant la lettre, já que ele assume a responsabilidade pelos seus atos em lugar de creditá-los inteiramente ao destino. É precisamente esse herói que Freud escolhe para nomear seu famoso complexo estruturador da sexualidade do ser falante.

Se até aqui falamos do sujeito no discurso científico e no discurso analítico como aquele que sofre determinações que o privam ou não da sua responsabilidade, vamos falar agora do sujeito num outro discurso como recusando toda e qualquer determinação. No início dos anos 70, Lacan preocupou-se em traçar a fórmula de um novo discurso, além dos quatro que já havia sistematizado, na tentativa de dar conta das relações de dominação e das peculiaridades do mestre contemporâneo. A este deu o nome de discurso do capitalista. Nele, o sujeito ocupa a posição mestra, ou seja, o lugar de agente, algo que só acontecia antes no discurso da histérica.

A diferença, entretanto, é radical. Enquanto no discurso da histérica o sujeito é aquele que aborda o outro ? no caso, o mestre ? a partir da sua falta, do seu sintoma, visando seduzi-lo ou intrigá-lo com sua demanda, e com isso fazê-lo trabalhar para tentar decifrar esse sintoma, no discurso do capitalista o sujeito não se dirige ao outro a partir de nenhuma falta. Ao contrário, ele exerce seu domínio sobre o outro (o empregado) exclusivamente a partir da sua vontade de fazê-lo trabalhar para si. A sua voz de comando é produzida a partir de um ato volitivo, que parece negar a própria divisão subjetiva, não deixando lugar para o inconsciente.
Esse sujeito possui como principal característica a autonomia: é o self-made man, literalmente, o homem que fez a si mesmo. Esta expressão, que sintetiza a noção de autonomia do sujeito capitalista em relação às antigas determinações, da tradição, por exemplo, deve ser lida também como autonomia em relação à própria linhagem, à cadeia de gerações e, portanto, à paternidade simbólica. Sim, pois o self-made man não descende de ninguém: tendo gerado a si mesmo, ele é o seu próprio pai. É interessante observar como essa pretensa autonomia contradiz a determinação genética proclamada pelo discurso científico, de cujo avanço entretanto ela colhe os frutos.

Além disso, não deixa de ser curioso constatar que essa autonomia é reivindicada também pelos movimentos que se pretendem críticos em relação ao discurso do capitalista: é o caso, por exemplo, das chamadas minorias, nas quais a noção de ?opção? (como em ?opção sexual?, por exemplo) é uma noção recorrente.

É preciso ressaltar ainda uma importante característica desse discurso, que Lacan resumiu na sua fórmula. Trata-se do acesso do sujeito ao objeto. No discurso do mestre, característico do laço feudal, anterior portanto à mais-valia, esse acesso não era garantido; o mestre, é claro, podia dispor do produto do trabalho do seu servo, mais ainda não havia aprendido a acumulá-lo. Lacan vai dizer que foi Marx, com sua teorização da mais-valia, que forneceu ao capitalismo a fórmula da sua longevidade, o que é uma observação bastante instigante e provocadora, pois é como se ele dissesse que foi Marx quem criou o capitalismo après-coup (só-depois).

Contudo, o que nos interessa aqui são as conseqüências para o sujeito desse acesso ao objeto. Roland Chemama até mesmo o denomina ?interpretação selvagem?, uma vez que o sujeito acederia ao objeto sem nenhum trabalho. Ele vai concluir que isso retorna sobre o sujeito como uma forma de domínio pelo objeto: o sujeito, no discurso do capitalista, é na verdade dominado pelo objeto que este discurso produz. Seria esse o limite oculto à sua autonomia?

Nesse ponto, cabe a questão: Esse sujeito seria analisável? A pergunta pode parecer despropositada, uma vez que a nossa prática é exercida em sociedades regidas pelo laço social capitalista. Mas, antes de nos determos nesse paradoxo, lembremos que Lacan já comentou em algum lugar que os ?verdadeiramente ricos? seriam mais difíceis de se analisar. Note-se que, para ele, os ?verdadeiramente ricos? não seriam os possuidores de grandes fortunas, mas aqueles que ganham a partir do trabalho do outro (do empregado); ou seja, aquele que se coloca no lugar de sujeito no discurso do capitalista.

E por que esses sujeitos seriam mais dificilmente analisáveis? Para responder a esta pergunta é preciso compreender a argumentação de Lacan, que, na sua formulação do discurso psicanalítico, situa o sujeito (o analisante) no lugar daquele que trabalha. Apesar dessa formulação ser posterior em seu ensino, desde o início dos anos 50, no seu Discurso de Roma, ele já definia a associação livre como um ?trabalho forçado? (como o trabalho que exerciam os prisioneiros nas penitenciárias). Não é de se estranhar, portanto, que aquele que se coloca subjetivamente na posição de quem põe o outro a trabalhar para si, tenha uma maior dificuldade em situar-se, num outro discurso, no lugar do trabalhador.

O que não quer dizer, obviamente, que todo patrão é inanalisável. É claro que o sujeito, mesmo no laço social capitalista, sofre os efeitos imaginários da castração, por exemplo. Mesmo que os objetos de consumo e o próprio capital se apresentem como sucedâneos do objeto a, estes não conseguem tapar a castração. É num momento de crise que o sujeito em questão pode vir a colocar-se na posição histérica, por exemplo, e demandar uma análise. Em nossos dias, entretanto, é nesse momento que a ciência (retornamos a ela) intervém, fornecendo o objeto (a pílula, o medicamento) que possibilita o alívio do sofrimento sintomático e impede o sujeito de ir mais adiante no questionamento da sua relação com o objeto que causa o seu desejo.

Estarão certos então aqueles que dizem estar a psicanálise ultrapassada e que prevêem seu fim próximo? Ultimamente temos escutado esta previsão da própria boca de muitos analistas, até mais do que da dos inimigos da psicanálise, a ponto de nos perguntarmos se em alguns deles (não todos) tratar-se-ia mais de um voto do que de um receio. Contudo, somos forçados a admitir que, se é um fato que o discurso psicanalítico não pôde surgir entre os assírios e os babilônios, por exemplo, porque os laços sociais de então não haviam ainda produzido um sujeito que pudesse suportá-lo, podemos admitir também a hipótese de que, no futuro, os laços sociais existentes tornem impossível a permanência desse discurso.

Preferimos imaginar, entretanto, uma terceira hipótese, além do triunfo da religião previsto por Lacan e do sujeito hodierno oscilando entre a ilusão de uma autonomia absoluta e uma determinação biológica total; a hipótese de que o avanço da ciência venha a produzir simplesmente uma exacerbação do sintoma histérico, como, aliás, vem produzindo há séculos.

De qualquer modo, a nossa preocupação deve ser menos com a simples sobrevivência da nossa prática do que com a sua obsolescência devido a soluções perversas. O nosso compromisso ético continua sendo o de possibilitar ao sujeito defrontar-se com a sua responsabilidade em relação ao seu sintoma e com as conseqüências da sua relação com o objeto que causa o seu desejo.
Referências bibliográficas

PÍLULAS ou psicanálise? Folha de S. Paulo, 10 set. 1995. Caderno 1, Editorial, p. 2.
CHEMAMA, Roland. Um sujet pour l?objet. In: Le Discours Psychanalytique, Paris, n. 1, fev. 1989. Edição de J. Clims e Association Freudienne.
DICK, Philip. K. The simulacra. Londres: Methuen, 1987.
LACAN, Jacques. Conference de presse. In Documents de travail ? Interventions de J. Lacan extraites des Lettres de l?Ecole. Paris: Editions de l?Association Freudienne Internationale, s/d. Edição sem fins comerciais.
_______________. Le Séminaire, livre XVII, L?envers de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1991[Ed. bras.: O Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.]
_______________. O Seminário, livro 18, De um discurso que não seria do semblante. Recife: C.E.F., 1996. Edição sem fins comerciais.
_______________. Écrits. Paris: Seuil, 1966. [Ed. bras.: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.]
_______________. Du discours psychanalytique. In Bulletin de l?Association Freudienne. Paris: Editions de l?Association Freudienne Internationale, dez. 1984.
MELMAN, Charles. Pourqoui la TVA n?est pas applicable à la séance de psychanalyse? In: Le Discours Psychanalytique, op. cit. [Ed. bras.: Por que o ICMS não é aplicável à sessão de psicanálise. In GOLDENBERG, Ricardo. Goza! Capitalismo, globalização, psicanálise. Salvador: Ágalma, 1997.]
TEIXEIRA, Marcus do Rio. O objeto roubado. In Seminários ? Coletânea de textos do Seminário de verão. Recife: Centro de Estudos Freudianos, 1993. Neste volume.

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Azul é a cor mais quente

Em “Azul é a cor mais quente” (Abdellatif Kechiche, 2013), Adèle (Adèle Exarchopoulos) é uma adolescente que vive num mundo pequeno, dividindo seu tempo entre as tarefas escolares e a diversão com a galera. Apesar dessa limitação, ela possui uma sensibilidade muito aguçada pela literatura e uma intuição de que o mundo é muito maior do que os papinhos das amigas. Essas características não são exatamente úteis para melhorar a sua relação com o seu meio, sobretudo no que diz respeito ao sexo: ela enjoa rapidamente de um rapaz com quem iniciou um casinho – mais por insistência das amigas do que por um interesse autêntico – e que é nitidamente inferior a ela na visão de mundo.
As coisas mudam quando ela conhece Emma, uma mulher mais velha e mais experiente do que ela e muito convicta na sua opção heterossexual (na definição de Lacan, heterossexual é todo sujeito que ama as mulheres).

A relação das duas é um ótimo exemplo do que Lacan afirma no Seminário 20, Mais, ainda: que as posições masculina e feminina na sexuação não têm necessariamente uma relação com a anatomia. Adèle se situa como objeto causa do desejo para uma Emma que se ocupa da sua sedução de acordo com o cânone masculino. Como frisa Charles Melman, a dimensão da alteridade se instaura no casal, ainda que este seja constituído por seres de corpos semelhantes: Adèle cuida amorosamente do lar enquanto Emma se inquieta com a sua suposta insatisfação e quer que ela seja feliz (o que ela afirma tranquilamente já ser).
O diretor tem o mérito de retratar uma relação entre duas mulheres de forma não preconceituosa e tampouco militante: enquanto seres da linguagem, Adèle e Emma experimentam as dificuldades corriqueiras do laço conjugal entre um homem e uma mulher, que vão do cômico ao trágico. Quando a pulsional Adèle, que devora tudo “mesmo quando não tem fome”, mostra que o sexo para ela é algo tão natural quanto sair na balada, Emma, que busca constituir uma família, não acha isso nem um pouco engraçado.

Apesar do título, a fotografia explora as cores quentes e a textura da pele dos corpos filmados em close. Apesar de não sentirmos a lentidão do ritmo, algumas cenas são muito mais longas do que o padrão cinematográfico atual. Isso se nota, sobretudo, nas cenas de sexo, mas não somente: quando Adèle conversa, dança ou grita slogans numa passeata estudantil a cena se estende por vários minutos. Poderíamos pensar, a princípio, que esse procedimento tem uma intenção erótica: exibir o corpo da personagem que, como uma ninfeta nabokoviana, parece não se dar conta da sua sensualidade, perambulando no mundo com os lábios sempre entreabertos.

Porém, creio que há mais do que uma intenção erótica nessas cenas alongadas além do habitual. Nessa tentativa de igualar o tempo narrativo e o tempo narrado, o diretor parece deixar transparecer uma posição: a ideia de mostrar as coisas “como elas são”. Creio que essa pretensão naturalista pode ser confirmada na forma como a própria história é narrada, evitando fazer um julgamento. Ora, ocorre que as coisas nunca podem ser mostradas “como elas são”, num filme ou em outra obra de arte. Acerca desse tema já se gastou muita tinta e papel (ou tela de computador). Talvez por isso, ao final do filme, ficamos com uma sensação de estranheza, como se tivéssemos acabado de assistir um documentário, e não uma obra de ficção.

Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, editor de Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012), entre outros.

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UM CORTE DE PAPEL – REFLEXÕES SOBRE A GRANDE BELEZA

Alguns criticam o diretor Paolo Sorrentino por sua suposta imitação de Fellini. Em A Grande Beleza (2013) essa tentativa de reproduzir o estilo do mestre se evidenciaria sobretudo na escolha das personagens exóticas – a santa, a editora anã… – e na celebração de Roma. Há nessa crítica um tanto de verdade e outro tanto de exagero. É claro que Sorrentino presta uma homenagem sincera a Fellini e tenta emulá-lo em alguns momentos, mas seu filme não se reduz a isso, mesmo porque seu olhar vem de outra época e jamais poderia reproduzir o olhar de um diretor de outra geração, com referências distintas. Sua Roma não pode ser jamais a Roma de Fellini, ainda que o cenário seja semelhante. Ainda assim – ou justamente por isso – ele consegue recortar na cidade recantos que surpreendem e encantam, como fazia o diretor de Roma. O tema do voyeur, do olhar de alguém que espreita sem ser visto é recorrente em várias cenas.

Jep Gambardella – interpretado pelo excelente Toni Servillo –, um jornalista que acaba de completar 65 anos, escritor de um único livro, apresenta-se como um homem dotado de sensibilidade. Talvez seja essa sensibilidade que o condena ao tédio, essa sensação que Lacan descreveu tão bem como o desejo de outra coisa: “Uma ocupação só começa a se tornar séria quando aquilo que a constitui, isto é, em geral, a regularidade, torna-se perfeitamente entediante.” (Seminário 5, As Formações do Inconsciente, p. 184) A rotina, para ele, é o que outros chamariam de diversão. Situado no centro da mundanidade, cercado pelos artistas, pelos ricos e descolados e pelos não tão ricos, ele percebe ao seu redor a marca da mediocridade. As cenas das festas intermináveis e da entrevista com a performer ilustram de forma exemplar essa mediocridade. Porém essa percepção não faz dele um histérico, tampouco um cínico. Não é um histérico porque ao apontar a mediocridade, não o faz desde uma posição exterior, como uma bela alma, mas se inclui na sua crítica. Não é um cínico porque ao contrário deste, não se compraz com a desordem do mundo para concluir que “as coisas não têm jeito” e justificar, desse modo, a sua posição.

Em meio a essa mediocridade, ele busca a “Grande Beleza”, mas afirma nunca tê-la encontrado. É evidente que essa é a grande ironia do diretor, pois a beleza está todo o tempo em volta do personagem, aonde quer que ele vá: nos lugares, nas obras de arte, nos corpos, na paisagem, até mesmo naquilo que ele identifica como mediocridade. Jep, porém, não é capaz de reconhecer a beleza, pois está imerso nela. Como os peixinhos da piada, ele não sabe o que é “água”. Falta-lhe o distanciamento necessário para perceber a beleza que busca e a falta desse distanciamento o impede de escrever o seu segundo romance – o que constitui o seu sintoma.

A beleza não é considerada um tema nobre hoje em dia: colocada sob suspeita de superficialidade, desprezada pela arte contemporânea, que se ocupa do feio e do repelente, acusada de reproduzir a ideologia da classe dominante, ela não possui dignidade suficiente para ser eleita como uma meta. Volta e meia algum militante de causas obscuras posta nas redes sociais um protesto repleto de ódio contra a “ditadura da beleza”, levando-nos a supor que quando admiramos Bach ou Bündchen praticamos a servidão voluntária ao capitalismo. Já Freud, em O Mal-Estar na Civilização, considera a beleza como uma das formas de combater o sofrimento. Ele se refere ao seu caráter “suavemente embriagante”, porém considera que a beleza fornece pouca proteção contra o sofrimento e conclui que a psicanálise não tem muito a dizer sobre ela. Lacan retoma esse comentário de Freud, mas em outra linha: para ele, a beleza é um engodo, uma última barreira que o sujeito ergue antes da pulsão de morte. Daí para os seus seguidores falarem mal da beleza é um passo (para trás, como acontece quando se segue sem pensar).

Na sua jornada noctívaga Jep atravessa as festas, as conversas, as relações mantendo sempre um ar blasé em relação a tudo, até mesmo em relação à morte. A única exceção capaz de abalá-lo é a recordação dessa mulher de quem pouco sabemos, a não ser que foi um amor da juventude. Na cena que representa a sua lembrança, ela se desvela e se recobre suavemente à luz da lua que se alterna com a sombra, replicando o seu gesto. Lacan apreciava muito a descrição do falo enquanto recoberto por um véu, imagem que ele foi buscar nos ritos iniciáticos da Antiguidade, e que ilustra a ideia do significante do desejo que não se pode acessar diretamente. Para Jep essa imagem remete à ideia do significante organizador, do Um que confere valor ao objeto e dá sentido à vida.

O filme de Sorentino provoca em nós essa sensação de suave embriaguez a que se refere Freud. Sua presença na atualidade nos faz pensar numa referência nostálgica à defesa estética contra o sofrimento mencionada em O Mal-Estar na Civilização. Mas ele não se limita a isso: ao mesmo tempo ele nos lembra o triunfo da mediocridade – soberana na mídia, onipresente nos laços sociais – do qual todos participamos. Nesse sentido, a sua própria beleza, suspeita de superficialidade, pode ser dolorosa como o corte da borda aguçada de uma folha de papel, que atinge apenas a superfície da pele, mas secciona as terminações dos nervos.

Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, editor de Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012).

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Revendo Oblivion

Revi Oblivion (Joseph Kosinski, 2013), filme que comentei brevemente o ano passado. Se ainda existe um preconceito que separa os filmes “sérios” daqueles “de entretenimento”, este exemplar da última categoria presta sua contribuição para desfazer essa fronteira. Já se passaram décadas desde que teóricos do porte de um Umberto Eco dedicaram ensaios a esse tipo de obras não nobres, mostrando que sua estrutura aparentemente simples contém elementos da arte “elevada”. É o caso deste filme, em que estão presentes alguns temas clássicos da literatura: o que constitui o humano, o duplo, o amor, a falta e o sacrifício. Sem esquecer, é claro, que a ficção científica, que trata do futuro, já tem um passado importante na história do cinema, com obras como Metrópolis (Fritz Lang, 1927) e 2001, Odisseia Espacial (Stanley Kubrick, 1968), o que deveria bastar para limpar o seu nome.

Baseado numa história do próprio diretor, o roteiro – muito bem elaborado – junta com precisão os fios de uma narrativa onde os fãs de f.c. reconhecerão citações sutis de obras do gênero, como Blade Runner (Ridley Scott, 1982), O Planeta dos Macacos (na sua primeira versão, de Franklin Shaffner, 1968) e o supracitado 2001. A belíssima fotografia em tons pasteis descortina amplas paisagens desertas, planícies desprovidas de vida onde os escombros da civilização se fazem presentes não como ruínas, mas enquanto restos ambíguos que mimetizam a natureza. Esse mundo desinfectado do humano fornece o contraste com o nicho de alta tecnologia em que vivem os personagens. Mas sem exagero: Oblivion é um dos poucos filmes na safra recente em que os efeitos especiais fazem parte do enredo, em vez de constituírem um fim em si mesmos.

De que trata esse enredo? Como já disse em outro texto, do esquecimento, é claro, bem como de sua contrapartida, a rememoração. Jack Harper (Tom Cruise) teve suas memórias apagadas para melhor executar a sua missão no planeta desabitado e ajudar a salvar o que resta da humanidade. Mas ele é atormentado por sonhos e lembranças recorrentes de uma época anterior ao seu nascimento. Sua parceira e esposa, Victoria (Andrea Riseborough), como uma Jocasta do futuro, recomenda que ele foque no presente e não dê atenção a essa história de memórias. Ele, porém, não se conforma, porque pressente que no passado reside o segredo da sua existência.

A tese de que a memória constitui o humano não é uma invenção original de Oblivion – lembremos de Blade Runner, no qual a hybris capitalista consiste não em criar simulacros do humano, mas em prover a sua mercadoria de memórias artificiais. Não importa se essas memórias são possíveis ou não. Há toda uma raça de críticos de ficção científica (que entendem muito de ciência e zero de ficção) dedicada a discutir se os prodígios descritos nessas obras podem ser realizados ou não – discussão tão inútil quando ridícula. A obra de ficção cria a sua realidade e não reproduz uma supostamente existente.

Já em Oblivion não se trata do capitalismo (extinto, como tudo mais), nem de falsas memórias, mas das verdadeiras. Porém não no sentido habitual do termo – a verdade aqui não diz respeito ao factual, mas à verdade do sujeito. Ela evoca o objeto perdido no sentido mais radical e propriamente psicanalítico: o que é perdido sem que jamais tenha sido alcançado pelo sujeito – e mais não se pode dizer sem revelar a história.

Escalar a atriz e ex-modelo ucraniana Olga Kurylenko para interpretar esse objeto é uma escolha mais do que apropriada – sua beleza, que domina todas as cenas em que ela aparece, merece ser justamente qualificada como utópica, na acepção de utopia fornecida por Quevedo (apud Borges): “voz grega que significa não existe tal lugar”. Ou, numa definição contemporânea: lugar ideal para se viver num mundo pós-apocalíptico. Desculpem, eu divago.

Voltando ao assunto: pode-se criticar a premissa açucarada de que se encontra o objeto do amor. Afinal, Lacan ensinou há tempos que é verdade que ao amante falta algo e que o amado possui algo – a ilusão é crer que aquilo que o segundo possui é o mesmo que falta ao primeiro. A sutileza de Oblivion, contudo, vai bem mais além do clichê hollywoodiano: não é simplesmente o sujeito que encontra o objeto que lhe falta, mas é o objeto que ao existir como faltante vai constituir um sujeito ali onde até então não havia um.

Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, editor de Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012).

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NINFOMANÍACA

Cada um tem o seu defeito: o de Lars Von Trier é se levar demasiado a sério. Tomemos como exemplo o filme mais recente que ele cometeu, Ninfomaníaca. Temos ali Charlotte Gainsbourg, mostrando que não herdou do seu pai apenas o sobrenome ilustre e o nariz horroroso. Infelizmente, por melhor atriz que seja, ela não pode fazer milagres e salvar as suas falas deploráveis. O roteiro é tão caricato que nos deixa na dúvida se o diretor estaria zombando de nós, espectadores. As cenas da infância da sua personagem com o pai são de um sentimentalismo tão piegas que só fazem sentido como gozação.

Quanto à sua jornada autodegradante, afinal, o que ele pretende com aquilo? Chocar? Mas será que alguém, além dos espectadores das novelas da Globo, ainda se choca com o sexo no século 21? Os comentários elogiosos que tive a oportunidade de ler associam insistentemente o sexo ao vazio, à angústia, etc. Não fica claro se isso pretende ser uma descrição, um comentário crítico ou uma sentença de cunho moralista. Mas é patético constatar que depois de a cultura ocidental haver superado o cristianismo, depois do surgimento da Psicanálise, da liberação sexual, etc, a grande novidade nesse campo seja um filme que associa o sexo ao vazio e ao sofrimento. O que é isso? Um sermão pós-moderno?

Com um tema como esse, Trier teria, pelo menos, duas opções: na primeira, eliminaria as cenas de sexo e faria um filme com personagens angustiadas comentando o vazio da vida, no estilo chatíssimo de Bergman. Na segunda, enxugaria ao máximo o roteiro, cortaria as reflexões pretensamente profundas e faria um filme erótico memorável sobre as aventuras de uma maluquete neosadiana. Afinal, atriz para isso ele tem, na pessoa de Stacy Martin, que com seu corpo esguio de seios pequenos e seu rosto comprido de olhos claros lembra em tudo a sensualidade de Jane Birkin, mãe de Charlotte.

Mas eu divago. Voltando ao filme, uma derradeira opção seria fazer com que a personagem, no final, revelasse ao seu dedicado ouvinte (e não venham me dizer que ele ocupa o lugar do analista, por favor) que ela inventou aquela história toda. Mas, como disse no início, o diretor se leva muito a sério para ter senso de humor. Talvez o defeito dos seus admiradores seja acreditar nele.

*

Publiquei este texto aqui no Face em fevereiro, logo após a estreia do primeiro filme. Recentemente tive a oportunidade de ler o artigo publicado por Contardo Calligaris na Folha de S. Paulo em 20/3, onde ele afirma que “Ninfomaníaca 1 e 2 é um dos filmes mais tocantes e notáveis que eu vi na última década”. O autor lista as razões para sua apreciação positiva, fazendo referência ao conceito lacaniano de gozo e contrapondo a experiência da personagem com a superficialidade dos nossos dias, em que “[…] a maioria prefere fugir do sexo pela zombaria ou pelo esculacho.” Quer dizer que estamos condenados a ter que escolher entre a mentalidade calhorda dos participantes do Big Brother Brasil e o estilo “I can’t get no satisfaction” da heroína de Trier? A banalidade versus o gozo que corrói o sujeito? Tenho a impressão de que existem mais opções entre esses dois extremos do que sonha a nossa vã psicologia.

Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, diretor da editora Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012) e de Vicissitudes do Objeto (2005), entre outros.

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Antonioni vidente

O frame (ou fotograma, pois o filme é de 1966) de Blow-Up é ilusório. Isolado da cena à qual pertence, ele transmite uma impressão de delicadeza. Ao contrário, o fotógrafo Thomas, vivido por David Hemmings, está muito distante de qualquer traço delicado: grosseiro, explorador, misógino, preconceituoso, racista, oportunista, ele é o oposto do ideal da geração do Flower Power que o filme supostamente retrata.
Não que seja desprovido de sensibilidade artística. Ao contrário: é condição da sua profissão de fotógrafo um contato diuturno com a beleza, que ele reconhece até onde ela é menos esperada, como numa hélice adquirida impulsivamente numa loja de antiguidades. Porém, esse gesto duchampiano se esgota em si mesmo: uma vez tendo se apropriado da beleza, ele não sabe o que fazer com ela – deixa que os entregadores abandonem a hélice encostada num canto do seu estúdio.

Já com as pessoas, Thomas é incapaz da sensibilidade que esbanja com os objetos inanimados. Ele é rude com todos, sobretudo com as mulheres, com as modelos que dele dependem para sua carreira e que ele trata com crueldade nas sessões de fotos e explora fora delas. Com a personagem de Vanessa Redgrave, que aparece nesta cena, ele mantém um joguinho meio boçal porque ela depende dele para conseguir algo. A exceção a essa regra é o tratamento que ele dispensa ao seu editor, a quem paparica a fim de conseguir publicar um livro de fotos “sérias”.

Comentei em outro lugar1 esse personagem contraditório, que destoa da sua época e do seu meio. Afinal, o que Antonioni pretendia com esse personagem “irrealista” para um filme ambientado nos anos 60, em meio aos ideais da contracultura? Seria um exemplo da sua abordagem descomprometida com a realidade? Ou, quem sabe, poderíamos pensar o contrário – que ao criar tal personagem, o diretor exerce um olhar preciso, quase premonitório?
O projeto radical da contracultura era o de uma revolução tanto social quanto “in the head”. Surgida em pleno declínio da função paterna, exaltava os ideais anti-fálicos e preconizava um mundo que não fosse regido por aquelas que eram identificadas como as formas mais explícitas do falicismo: o poder, a disputa, a autoridade, a separação dos sexos (“gêneros”, segundo o jargão do discurso universitário norte-americano, derivado do livro de Stoller, de quem Lacan2, no seu Seminário 18, De um discurso que não fosse semblante, diz ironicamente que ele teria se beneficiado muito se tivesse lido Lacan).

Porém, ainda que o capitalismo não tenha morrido, como sonhavam os mais exaltados – ao contrário, ele parece demonstrar uma extraordinária habilidade em sobreviver às próprias crises e adaptar-se a partir delas – não se pode negar que aquilo que na época da contracultura constituía rebeldia, na atualidade está do lado da norma. Como nota Charles Melman: “Ora, hoje podemos observar que a palavra de ordem da ideologia liberal é assegurar o gozo a todos. E isso se tornou a nova moral. A nova moral é que cada um tem o direito de satisfazer plenamente seu gozo, seja quais forem suas modalidades.”3
A retirada das interdições sociais sobre o desejo, porém, não contribuiu para melhorar a relação entre os sexos. A novidade nesse campo foi a expansão da clivagem entre amor e desejo – que Freud diagnosticava na sua clínica como exclusiva do homem – para o lado feminino. Com um detalhe: a degradação da vida amorosa, parte mais importante dessa clivagem, continua sendo um terreno onde os homens se sentem mais à vontade (talvez pelo caráter todo-fálico do seu gozo). Terreno fértil para a proliferação de todos os tipos de preconceito, para surpresa de quem esperava uma era de aceitação das diferenças.
Essa surpresa tende a aumentar quando se constata que essa degradação hoje em dia não está mais do lado do “inimigo”, e sim do próximo. Por isso todos os chocam com as reportagens4 sobre o assédio sexual entre adolescentes em escolas de classe média-alta (assédio não no sentido da correção política, mas de violência sexual mesmo). Comparado ao estilo cafajeste à laise dos boyzinhos de hoje, o machismo tradicional poderia muito bem passar como a fina flor do cavalheirismo.
Como em outras frentes, o combate da contracultura ao falocentrismo errou o foco. O termo “falocentrismo”, empregado para se referir à teoria freudiana, só pode significar o falo como centro, e não o homem como centro. Se não se trata do órgão, mas do significante, como acrescenta Lacan, o acesso ao falicismo está aberto para os falasseres, independente da sua anatomia (ou alguém ainda repetiria o slogan dos anos 60, de que o mundo seria melhor se os países fossem governados pelas mulheres?).
Porém, além disso, o falo é o significante que fornece o padrão segundo o qual podemos nos entender no que diz respeito ao desejo e ao gozo. A nossa cultura, contudo, parece ser a única em que o único ponto de concordância é que ninguém se entende. Sem referências simbólicas, os sujeitos passam a se guiar por aquelas imaginárias, ditadas pela opinião da maioria, espelho coletivo pelo qual todos se medem. Daí a importância da mídia, bicho-papão das redes sociais, as quais, por sua vez, competem com ela na criação de novos modelos de conduta (ensinando o que devemos comer, vestir, falar, etc.) e novos moralismos (o que devemos aceitar e o que devemos rejeitar).
Nesse mundo de valores que não se ancoram em nenhum ponto fixo, os teóricos do discurso que Lacan denominou universitário não conseguem disfarçar a sua impotência teórica, repetindo que tudo é “líquido”, numa espécie de diarreia intelectual que mimetiza a realidade estudada. Como não poderia deixar de ser, surgem também as velhas vozes que prometem a estabilidade em meio ao caos, seja pregando o retorno a valores conservadores, seja vendendo o gato do socialismo do século 19 como a lebre do século 21.
O que nos conduz de volta a Thomas, o personagem de Blow Up. Imaginado nos anos 60, ele é na verdade uma criatura contemporânea: camaleônico, ele se paramenta com os traços da modernidade para repetir o velho oportunismo, recita os clichês de esquerda para se locupletar como a direita, posa com um discurso do bem para se dar bem. Talvez Antonioni tenha captado com suas antenas de artista que aquilo que estava latente sob a utopia do Flower Power e de Maio 68 era na realidade o avesso dos ideais libertários, da ausência de autoridade. Ao contrário, tratava-se da autoridade desregulada do supereu e sua exigência de um gozo sem limites. “É ao que vocês aspiram como revolucionários, a um mestre. Vocês o terão.”5 – Lacan teve a ousadia de afirmar aos estudantes de Vincennes em 1969.

Notas
1. “Blow-Up ou A crise do sentido”. In: TEIXEIRA, M. R. O espectador ingênuo. Salvador: Ágalma, 2012.
2. LACAN, J. O Seminário, livro 18, De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: J. Z. E., 2011.
3. MELMAN, C. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC, 2003, p. 60.
4. TRINDADE, E. e VINES, J. “Abuso sexual entre adolescentes”, Folha de S. Paulo, 30/4/2013.
5. LACAN, J. O Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: J. Z. E.,

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ELYSIUM E O “TRANSUMANO”

Esqueçam o maniqueísmo do roteiro de Elysium (Neill Blomkamp, 2013) , que parece ter sido escrito por Nicolás Maduro: em num futuro relativamente próximo, os “burguesitos” moram em um paraíso espacial, enquanto “el pueblo” sobrevive como pode na Terra favelizada. Até o idioma é hierarquizado: a secretária de Estado dos cidadãos privilegiados, interpretada por uma Jodie Foster fálica até a alma, fala francês (que na mitologia norte-americana é uma língua de gente metida a besta), enquanto nossa Alice Braga é obrigada a mesclar seu impecável inglês com frases em espanhol (segundo essa mesma mitologia, uma mulher morena tem que ser “hispânica”).

Esqueçam por um instante a excelente atuação de Wagner Moura no papel de um hacker doidão, mostrando (como se fosse preciso) que não nasceu para ficar conhecido como o Capitão Nascimento. O astro do filme é Matt Damon, na pele de um norte-americano “do Bem”, que luta para salvar a própria vida e de quebra a dos desfavorecidos. Para isso, porém, ele tem que implantar cirurgicamente um chip no córtex e um exoesqueleto mecânico.

O mito do cyborg povoa há muito as fantasias dos autores de ficção-científica. A novidade, nas últimas décadas, é encontrá-lo nas fantasias dos cientistas que, estes sim, têm o poder de realizá-las (ainda que não totalmente). Porém, mais esquisito ainda é observar a euforia com que alguns acadêmicos comemoram tais avanços da ciência. Referindo-se a esses autores, Philip K. Dick – escritor de f.c. que é frequentemente citado como o autor que descreveu de forma mais elaborada os seres artificiais – já dizia numa linguagem curta e grossa que achava uma maluquice um ser humano almejar transformar-se em máquina. Não que essa objeção detenha nossos universitários, que “viajam” em especulações acerca do “transumano” (termo pernóstico para a natureza de tais seres híbridos entre o humano e a máquina). O argumento mais comum – utilizado, entre outros, pelo histriônico Zizek – é que, na ausência de uma natureza humana, não haveria fundamento teórico para criticar as tentativas de criar o cyborg.

“Por meio de um curioso sofisma, a caducidade da noção de natureza do homem é aqui utilizada para justificar a apologia do “transumano”, da superação da espécie humana. Uma vez que não se poderia definir de forma universal o que vem a ser o humano, todas as intervenções sobre o homem, inclusive – e principalmente – aquelas que visariam sua transformação num artefato mecânico, num cyborg, seriam justificadas. Futuro totalitário? De modo algum.” (Teixeira, M. “Uma ética do objeto”, In: Vicissitudes do Objeto, 2005)

No filme, o cyborg está do lado do Bem, dos pobres e explorados (como não podia deixar de ser). Talvez seja uma maneira de aceitarmos a sua desfiguração, a sua reificação literal, uma vez que ele se torna uma espécie de armazenador de memória feito de carne. Onde Bill Gates estava que não enxergou a chance de patrocinar a produção desse filme?

Marcus do Rio Teixeira – psicanalista, editor de Ágalma, autor de O Espectador Inocente – Psicanálise, Cinema, Literatura e Música (2012).

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