Marcus do Rio Teixeira
Quando recebemos o convite, feito por Angélia Teixeira ? a quem agradecemos a oportunidade de estar aqui ? para falar sobre este tema, nos colocamos inicialmente uma questão. Esta questão, que nos pareceu um tanto ingênua, diz respeito à naturalidade com que nos referimos à definição lacaniana do supereu. De fato, esta definição já faz parte das nossas referências teóricas há tanto tempo que costumamos esquecer ? ou, no caso das novas gerações de analistas, saltar ? a definição freudiana, evitando cotejá-la com a leitura de Lacan. A nossa questão poderia ser resumida desta forma: Lacan está sendo coerente com Freud quando fala do supereu?
A abordagem do supereu em Lacan nos chama a atenção, logo de início, pelo caráter provocador da sua definição aforismática, que inclui o conceito de gozo, considerando-o uma injunção feita pelo supereu ao sujeito. À primeira vista esta definição parece entrar em total contradição com a definição freudiana. Primeiramente porque, se abordarmos o conceito freudiano de supereu superpondo-o ao conceito de gozo, constatamos, de imediato, que para Freud o supereu só poderia ser definido como instância que interdita, que proíbe, que tolhe o gozo ? aí entendido, no caso, como gozo sexual, porque é preciso frisar que para Freud o gozo de que se trata é, sem dúvida alguma, o gozo sexual. O supereu freudiano é, portanto, a instância que vai interditar o acesso do sujeito ao gozo sexual, e Freud lista todas as conseqüências sintomáticas decorrentes, tanto da tentativa de cumprir esta proibição (auto-exigência neurótica), quanto das tentativas de burlá-la (sentimento de culpa).
Passamos muito rapidamente por esta parte, uma vez que todos vocês possuem bastante familiaridade com o tema. O supereu aparece na obra de Freud, sobretudo em O Eu e o Isso, como uma instância relacionada com a consciência moral, com a proibição, com o sentimento de culpa. Freud se refere a ele como herdeiro do complexo de Édipo, ou seja, como uma introjeção da autoridade das figuras parentais, notadamente da figura do pai ? do pai real, como diria Lacan ? resultante dos desdobramentos da fase final do complexo de Édipo. Ao que parece, ainda estamos aqui em uma concepção espacial do dentro e do fora (diversa da topologia moebiana de Lacan), na qual algo que vem do exterior, ou seja, essas proibições provenientes do casal parental, é incorporado pelo sujeito. Há também toda uma discussão entre os analistas da época e mais tarde entre os pós-freudianos sobre a origem do supereu. Fala-se de um supereu que seria herdado diretamente do supereu paterno e se discute a existência de um supereu arcaico ou a proeminência da cultura sobre algo de inato. Para Freud haveria ainda um problema específico no que diz respeito ao supereu feminino: uma vez que para as meninas faltaria um bom motivo para abandonar o Édipo, elas permaneceriam nele por um tempo ?indeterminado? e a sua dissolução seria incompleta. Como conseqüência, diz ele, a formação do supereu nas mulheres seria prejudicada e essa instância não conseguiria adquirir a intensidade que dela seria esperada. Esta observação controversa de Freud não é, no nosso ponto de vista, tão discutida quanto mereceria entre nós. De todo modo, é curioso que os analistas prefiram citar mais uma frase atribuída a Freud, que diz do seu não-saber sobre a posição feminina, do que outras, como esta, que revelam um saber provocador.
Um outro ponto que se destaca na concepção freudiana do supereu é a sua extrema crueldade ? esta é a maneira como Freud a ele se refere ? sua exigência desmedida, sua falta de conexão com a realidade. À medida que o eu se esforça no sentido de alcançar uma nobreza moral, um estado análogo à santidade, que ele busca atender essas exigências que são justamente impossíveis de serem cumpridas, o supereu se torna ainda mais exigente. Para Freud, portanto, o supereu é uma instância cruel e que não tem noção da realidade. Suas exigências desmedidas não são, na realidade, simples exigências morais que o sujeito poderia cumprir desde que aceitasse abrir mão de seu gozo. Ao contrário, essas exigências tornam-se maiores e mais absurdas à medida que ele busca atendê-las.
Ao consultarmos, para esta apresentação, o Index de Henry Krutzen ? que foi de grande utilidade ? chamou nossa atenção a extrema escassez das referências de Lacan a este conceito na sua obra. Se compararmos com outros termos, como por exemplo, o Ego, o Moi, veremos que eles possuem uma quantidade muito maior de citações na obra de Lacan, ao longo do seu Seminário ? sendo citados várias vezes ao longo das aulas de um mesmo Seminário ? e dos Escritos. O supereu, por sua vez, aparece predominantemente nos primeiros Seminários, sobretudo no Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud; e nos Seminários imediatamente posteriores até o 7 ou 8. Em seguida as referências se tornam cada vez menores e mais espaçadas. Às vezes, elas consistem em uma única frase em todo um ano de ensino. Finalmente, há essa famosa referência que aparece no Seminário 20, Encore, que na verdade é precedida de uma formulação mais completa no Seminário 18, De um discurso que não seria do semblant. Em seguida, uma única citação no Seminário L?insu, e isso é tudo que existe nos Seminários de Lacan sobre o supereu. Nos Escritos, o conceito comparece mais longamente em seu artigo sobre Psicanálise e Criminologia, e em seguida ele se resume praticamente a uma frase, uma frase de efeito que Lacan repete insistentemente, citando a si mesmo ? sua definição do supereu como ?esta figura obscena e feroz?. Lacan não se estende muito além desta definição.
Não pretendemos fazer aqui uma leitura exaustiva da concepção lacaniana do supereu ao longo dos Seminários, mas diríamos, brevemente, que no Seminário 1, quando do seu retorno a Freud, trata-se para Lacan de um trabalho de precisão, de depuração dos conceitos freudianos. A leitura lacaniana do supereu situa-se nessa linha de trabalho: trata-se de tomar o conceito freudiano e lapidá-lo, aparar suas arestas, depurando-o do ranço da ego-psychology, até chegar a uma definição essencial. O que é interessante nesse início do seu ensino, nos anos 53/54, é ele que praticamente antecipa a sua definição posterior do imperativo. Ele já afirma então que o supereu se define como sendo um imperativo; mais ainda, ele o reduz ao enunciado, a uma manifestação do Simbólico, uma espécie de ponta do Simbólico que se destacaria e que restaria como enunciado puro. Ou seja, ele remete o supereu ao campo da linguagem, ao enunciado e ao significante. No Seminário 3, As psicoses, Lacan vai novamente aproximar o supereu do significante. Retornaremos a este ponto mais adiante. Além disso, ele vai destacar na definição freudiana o aspecto de ?lei insensata? ?é assim que ele denomina o supereu ? uma lei que não tem noção de realidade, uma lei sem sentido e, como ele diz, uma lei que, no limite, é a própria negação ou o próprio desconhecimento da lei. Trata-se de uma lei tão exagerada que, no limite, ela é a sua própria negação. Observem, porém, que nesse período Lacan ainda permanece próximo à definição do conceito de supereu no sentido estritamente freudiano. O supereu nesse momento ainda é um conceito que ele retoma de Freud e que ele procura depurar, mas que ele interpreta de modo fiel a sua acepção freudiana. Por exemplo, ele justifica a sua definição do supereu como figura obscena e feroz remetendo esta ferocidade à crueldade freudiana, tal como Freud define o supereu ? trata-se da crueldade em relação ao eu.
Nos anos seguintes, encontramos referências ao supereu aproximando-o da Voz, no Seminário 10, A Angústia, e outras definições esparsas que vão se estender ao longo desses primeiros Seminários. Cabe destacar, por exemplo, a distinção da instância do Ideal do eu. Finalmente, no Seminário 18, De um discurso que não seria do semblant ? preferimos manter este termo no original por tratar-se de uma tradução muito problemática ? Lacan vai retomar de forma um tanto repentina este conceito, em passagens curtas, porém extremamente marcantes, nas quais destaca a sua importância na teoria freudiana e aponta a sua relação com o gozo. No decorrer do Seminário ele comenta, de passagem, que ?o supereu é a única coisa da qual jamais tratei?. Ele vai anunciar então, no final da última aula deste Seminário: ?eu trago aqui alguma coisa para vocês guardarem na mão…? Em seguida, anuncia de maneira bombástica que ?na verdade, a grande novidade da segunda tópica de Freud é o supereu?. Ele vinha de falar, justamente, do pai da horda primitiva, e nessa passagem aproxima o supereu deste pai que é, justamente, o ao-menos-um que escapa à castração: ?E o que é que esse Pai com efeito diz, no declínio do Édipo? Ele diz o que diz o supereu. O que diz o supereu ? não é por nada que eu nunca o abordei verdadeiramente ? o que diz o supereu é ?Goza!??
Segundo pudemos verificar, esta é a primeira formulação do supereu como imperativo de gozo, apesar de ser menos citada entre nós que a formulação posterior do Seminário Encore. Lacan vai finalizar com uma citação da Bíblia, extraída do Eclesiastes: ?Goza tanto quanto tu és, goza. Goza com a mulher que tu amas.? E ele conclui de modo irônico, dizendo: ?É mesmo o cúmulo do paradoxo porque é justamente do amor que vem o obstáculo?. Trata-se aqui de uma referência à famosa clivagem freudiana do desejo masculino entre o objeto do amor e o objeto do desejo. Lacan passa o Seminário seguinte sem voltar a se referir ao supereu e, exatamente um ano depois, no seu Seminário 20, Encore, ele continua como se não houvesse feito uma interrupção, retornando exatamente ao ponto onde havia parado e falando do gozo, numa última referência ao supereu, na qual reafirma que ele é o imperativo do gozo ? é essa instância que diz: ?Goza!? Mais adiante, há uma única referência no Seminário 24 e mais nada.
A primeira impressão ao fazer esse percurso da abordagem do supereu na obra de Lacan é que ele parece inicialmente não saber muito bem o que fazer deste conceito freudiano, que é uma espécie de batata quente em suas mãos. Entretanto, esta formulação tardia do Seminário 18, parece nos indicar uma outra via, onde Lacan na verdade procura dar uma nova roupagem a este conceito, onde não se trata mais de uma depuração do conceito freudiano, mas de uma leitura propriamente sua, uma apropriação lacaniana do conceito do supereu. Nesse sentido, nos parece que ele adota uma abordagem que, apesar de estar delineada no conceito de Freud, avança em outra direção. Voltemos aqui à questão que levantamos no início: Freud e Lacan estão dizendo a mesma coisa quando falam do supereu? Eles estão falando do mesmo gozo? Para Freud, como vimos, trata-se sem dúvida do gozo sexual. E quanto a Lacan, seria o mesmo? A resposta a esta questão é essencial para respondermos esta questão, pois se ambos falam do gozo sexual, haveria uma contradição, uma vez que, segundo Freud, o supereu seria uma instância interditora desse gozo, enquanto para Lacan seria uma instância que proferiria um comando ao gozo. Por outro lado, se Lacan estiver se referindo a um gozo que não o sexual, um gozo, por exemplo, do fracasso, do sofrimento neurótico, do sintoma, poderíamos dizer então que se trata de uma leitura da concepção freudiana que não entraria em contradição com aquela, mas que buscaria repensá-la à luz de um novo aparelho conceitual.
Para esclarecermos este ponto, devemos lembrar de como o próprio Lacan define o gozo sexual. Para ele, trata-se de um gozo que diz respeito ao gozo fálico, um gozo que é limitado pelo significante, e que tem, necessariamente, que sofrer uma escansão, cujo modelo princeps é o orgasmo masculino. Ou seja, é preciso haver uma subida e um declínio da tensão, uma pausa necessária até mesmo biologicamente, para que o sujeito goze novamente. E quanto ao gozo imposto pelo supereu, será que poderíamos pensá-lo da mesma forma? Uma pista estaria na observação feita por Freud acerca das exigências feitas pelo supereu, as quais ele considera exageradas, desmedidas, incompatíveis com a realidade. Neste caso, o mandado de gozo do supereu seria impossível de ser cumprido. Este gozo seria, talvez, próximo não do gozo fálico, do gozo sexual, mas sim do que Lacan denominou gozo do grande Outro. Lacan parece dar uma pista nesta direção quando aproxima o supereu do pai da horda primitiva, daquele que é, justamente, o pai que escapa à castração.Trata-se do grande Outro, mas do grande Outro não castrado. Este imperativo de gozo imposto pelo supereu diria respeito, portanto, a um gozo do grande Outro, um gozo não-sexual, não-fálico, ilimitado, que não encontraria algo que pudesse detê-lo, uma barreira. A injunção ao gozo seria impossível de ser cumprida, justamente, porque, caso fosse cumprida, seguindo ao pé da letra o imperativo do supereu, o que o sujeito encontraria seria sua própria morte, o seu desaparecimento enquanto sujeito. Pois uma vez que o sujeito se arrisque a ir ao extremo do gozo do Outro, deste gozo que não possui limite, a única coisa que poderá detê-lo será, justamente, a morte. Estamos falando aqui de um gozo que consome o sujeito no sentido que uma vela é consumida pela chama, cujo modelo mais próximo na nossa clínica é, precisamente, o gozo do toxicômano, que vai até o extremo, até encontrar a overdose. Lacan retomaria portanto a formulação freudiana do supereu, resumindo-o ao puro imperativo que impede o acesso do sujeito ao gozo fálico, um comando a avançar até o extremo do gozo do Outro, que poria em risco o sujeito.
Quanto ao interesse decrescente de Lacan por este conceito, podemos entendê-lo como uma constatação de que o supereu não era necessário no seu aparato conceitual em uma fase posterior do seu ensino. Isto porque, na medida em que ele trabalha o conceito, reduzindo-o ao enunciado, aproximando-o do significante, a instância freudiana é de certa forma absorvida pelo significante-mestre, pelo S1, que Charles Melman vai chamar de manifestação concreta do imperativo categórico. O S1 assume na teoria lacaniana as funções de comando, de imperativo, que cabiam ao supereu, com a vantagem de não incorrer no risco de psicologização que a segunda tópica propicia, por remeter este comando a um puro significante. Restaria a articulação com a dimensão do gozo, que permite pensar a posição subjetiva na situação de sujeição ao Outro e aquilo que o sujeito vivencia nesta situação como gozo. Talvez isso explique a volta tardia de Lacan sobre esse conceito e a sua referência elogiosa no Seminário 18.
Para concluir, colocaríamos uma última questão: qual seria a pertinência do conceito de supereu na contemporaneidade? Faria sentido, seguindo Lacan, retomar ainda um conceito freudiano como este ou deveríamos abandoná-lo, na medida em que na obra final de Lacan ele de certo modo não lhe confere a mesma importância que outros conceitos?
Parece-nos que o supereu possui uma pertinência na clínica contemporânea, embora de uma forma naturalmente diferente daquela que lhe dava Freud. Esta diferença se daria no sentido de que ele se faz presente, hoje em dia, como um imperativo do gozo que provém, não mais das instâncias do casal parental, desses grandes Outros reais a que Freud se referia, tampouco desse grande Outro não barrado, do Deus do Antigo Testamento, mas de um outro tipo de lugar que seria, justamente, aquele que nós designaríamos, genericamente, como o social. Dessa forma, o imperativo superegóico, na contemporaneidade, chegaria a nós proveniente, não mais da família ou da tradição religiosa, mas do anonimato dos discursos a que somos submetidos pela cultura, pela mídia. É desde este lugar que nos chegam os imperativos do supereu, imperativos que conhecemos bastante e dos quais poderíamos citar alguns dentre os mais conhecidos, os mais freqüentes na nossa sociedade, que se apresentam sempre sob a forma de enunciados, como Lacan ressaltou. Quais seriam estes imperativos na sociedade contemporânea?
Poderíamos citar, dentre eles:?Tenha um corpo belo e saudável.? ?Seja rico e famoso.? ?Tenha uma vida sexual intensa e prazerosa.? E, finalmente, mas não por último: ?Seja feliz.? O mais interessante aqui é que nós podemos notar que as manifestações sintomáticas mais comuns na contemporaneidade e que apresentam um desafio, não somente à clínica psicanalítica, mas à clínica médica, se apresentam como uma resposta a estes imperativos, mas uma resposta em negativo. Então, nós temos, em resposta à injunção de ter um corpo belo e saudável, a anorexia, a bulimia, e também poderíamos incluir aí talvez a toxicomania. Quanto a ser rico e famoso, o que se apresenta é a exclusão social e a delinqüência, sobretudo na forma como aparece, em sua expressão recente, a delinqüência entre os jovens de classe média e média alta. A respeito da injunção a ter uma vida sexual intensa e prazerosa, aumentam os casos do que os médicos chamam, eufemisticamente, não de impotência, mas disfunção erétil. E, recentemente, há uma tentativa de definir clinicamente um equivalente feminino para que se possa encontrar mesmo medicamento para a mulher. E, finalmente, atendendo ao imperativo de felicidade, temos o mal da moda, a depressão
Notem que tais enunciados, que outrora seriam assumidos meramente como votos, anseios, apresentam-se em um caráter imperativo, sob a forma de injunções desse social anônimo às quais o sujeito se esforça para obedecer, o que lhes confere uma dimensão nova, propriamente superegóica. Observem também que nas manifestações sintomáticas que daí decorrem poderíamos perceber tanto uma submissão do sujeito a estas injunções, quanto uma maneira pela qual ele reagiria a este gozo ilimitado que lhe é imposto. Os novos sintomas da contemporaneidade podem ser lidos como um modo de reação do sujeito contra a reificação que lhe é imposta pelo laço social, onde o sintoma surge como uma derradeira manifestação contra o seu apagamento.
Referências bibliográficas
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________. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. In E.S.B. vol. R.J.:Imago, 197
Krutzen, H. Index
LACAN, J. O Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud. R.J.: J.Z.E., 1979.
________. O Seminário, livro 3, As psicoses. R.J.: J.Z.E., 1988 (2a ed.revista).
________. O Seminário, livro 10, A Angústia. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 1997 (edição sem fins comerciais).
________. O Seminário, livro 18, De um discurso que não seria do semblante. Recife: C.E.F., 1995 (edição sem fins comerciais).
________. O Seminário, livro 20, Mais…ainda. R.J.:J.Z.E.,1982.