Clarice Gatto
?Uma filha é para seu pai um tesouro a vigiar, e o cuidado dela tira-lhe o sono para que não suceda que passe a flor da sua idade sem se casar, e, quando enfim estiver com seu marido, lhe não seja odiosa.?
Eclesiástico, 42, 9.
?Las Meninas? ?Vênus e seu espelho?
Las MeninasVênus
(Este trabalho teve início em 1996, por ocasião do IX Encontro Internacional do Campo Freudiano em Buenos Aires… Lembro-me do embaraço que me causou o título do livro organizado por Fernando Marías, Otras meninas[1] que encontrei na Livraria do Museu de Belas Artes. Porque em português nós dizemos outras (com u), e otras pertence ao modo de falar das crianças.
Eis aí, por onde tudo começou: por um equívoco ?amoroso?… lá onde a relação genital proibida se mistura à excitação libidinal, atualizando o que regressa. Despertando o passado e o presente ao mesmo tempo, vindo significar no futuro o ciúme que invadiu meu corpo… Ou, no dizer que se segue, a partir dessa articulação do simbólico com o real, através do equívoco significante com a letra, algo se inscreve, causa desejo e o trabalho da Durcharbeiten se faz.)
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A arte ilusionista e barroca do grande colorista Diego Rodríguez de Silva Velázquez (1599-1660)[2] no século XVII – dita impressionista por Manet duzentos anos depois – encerra a repetição que antecipa um estilo. Comparando Las meninas com Vênus e seu espelho[3] encontramos em Velázquez uma leitura moderníssima do espelho. Ao apresentar a diluição da imagem especular, seu espelho desvia nosso olhar para uma imagem real…
N? O objeto da psicanálise[4], Lacan havia feito uma leitura surpreendente a partir deste quadro e do ensaio de Michel Foucault em As palavras e as coisas[5], conforme observou Antonio Quinet em seu artigo O espelho e o quadro[6]. O ?meu problema?, dizia Lacan, era estabelecer uma distinção definitiva entre a função da perspectiva (que organiza o espaço) e a da moldura (que cerne o espaço em um de dentro e um de fora) – ambas a partir do quadro e do espelho – para pensar uma ?teoria do desejo? quando da entrada do próprio sujeito no duplo campo do escópico e do invocante[7], e a implicação do analista nesta empreitada.
Além das interrogações sobre a importância em demarcar essas diferenças cruciais, Lacan também se perguntava sobre o ?fim? da análise e ?como se transfere essa dialética do objeto a, se é a este objeto a que é dado o fim e o encontro onde o sujeito deve se reconhecer. Quem deveria fornecer? Ele ou nós??[8]
Aí, parece-me que Lacan se serve de Velázquez para tomar ?Las Meninas? como paradigma de uma interrogação sobre a posição do analista: ora como espelho porque ?mostra o que não se pode ver? estabelecendo uma zona real de visibilidade, ora como quadro quando apresenta duplamente ?o que falta à imagem?: seja criando uma zona imaginária de invisibilidade entre o quadro e o público (o plano-sujeito[9] e sua relação com a fantasia fundamental[10]), seja no que deixa ver uma outra zona, simbolicamente marcada pelas diversas fendas que possui um quadro, como dizia Lacan, e por ele denominadas de ponto ao infinito (o nó do sujeito na articulação entre demanda e desejo, conforme já o havia trabalhado no seminário sobre A Identificação[11]).
No primeiro ponto tomarei o esquema freudiano da pulsão escópica para demarcar o efeito epifânico[12] que produz essa cena original criada por Velázquez. No segundo ponto, a cor e a luminosidade servirão para apresentar uma outra cena do quadro, aproximando-a da interpretação (memorável) de Velázquez da mulher enquanto sintoma e o cerne do trabalho analítico – suporte de uma construção fantasística.
Ein anderer Schauplatz[13]
No seminário O ato psicanalítico Lacan escreve: ?Quando o analista se interroga sobre um caso, quando faz sua anamnese, quando o prepara, quando começa a dele se aproximar e, uma vez que ele entre com a análise, que ele procure no caso, na história do sujeito, da mesma maneira que Velázquez está no quadro das Meninas, ele estava já, o analista, em tal momento e em tal ponto da história do sujeito. A vantagem disso é que ele saberia o que é a transferência. O centro, o pivô da transferência, isso não passa absolutamente por sua pessoa. Há algo que já está lá. Isso lhe daria uma maneira completamente diferente de abordar a diversidade dos casos. Talvez, a partir desse momento, ele chegasse a encontrar uma nova classificação clínica que não a da psiquiatria clássica, que ele jamais pôde tocar nem abalar até agora, e por uma boa razão: porque jamais pôde fazer outra coisa além de segui-la.?[14]
Dizer que o analista está na história do sujeito ?da mesma maneira que Velázquez está no quadro das Meninas? nos permite assinalar para duas maneiras diferentes de se estar na história do sujeito: ora como sujeito suposto pintor aquele que supostamente assina a cena do quadro, ora como o pintor no ato de pintar…
Lacan se utiliza das leis da perspectiva – tomada da Geometria – para usá-las como suporte da montagem pulsional, e assim aproximar a presença de Velázquez no quadro com a do psicanalista na história do sujeito.
A pulsão – der ?Trieb? – funciona para Freud ?como uma noção de fronteira entre psíquico e somático, como representante psíquico oriundo das excitações que chegam à psique pelo interior do corpo, e como uma ?exigência de trabalho? (Arbeitsanforderung) que é infligida ao psíquico em conseqüência de sua conexão com o corpóreo.?[15] Quando Freud escreve os destinos da pulsão – a inversão[16] no contrário, a volta contra a própria pessoa, o recalque e a sublimação – ele utiliza as duas primeiras para construir (ao invés de analisar) um arcabouço teórico capaz de demarcar para o próprio corpo as conseqüências psíquicas da economia libidinal – ?essa energia imensurável das pulsões?[17],[18].
?A realidade perceptiva e a realidade perspectiva se opõem, assim como a visão e o olhar?[19]. As leis da visão são aquelas do espelho, as do olhar se suportam pela construção perspectiva do quadro, tal qual uma tela entre o sujeito e o mundo como nos faz ver Magritte ao pintar uma janela no quadro e através da qual nosso ?olhar mergulha no espaço? criando-o.
O espelho de Velázquez – tanto em Vênus e seu espelho (1644-1648) quanto em Las meninas (1656-1657) – dilui a imagem especular desenhando um espectro de imagens ?reais? que funcionam como traço significante. É assim que Lacan vai dizer que ?o rei e a rainha representados no espelho são uma presença simbólica e do simbólico, um representante do espelho e não uma representação de um espelho ou de um modelo.?[20] Na verdade, o esvaziamento da imagem produzido pela apresentação dos semblantes embaçados em ambos os quadros, abre a possibilidade de uma série de interrogações: embaçado pelo tempo? Pela distância? Por que pintou um suposto casal real? Que quer dizer? Conjugando nossa visão ao olhar insatisfeito pela falta de nitidez ele nos leva a encontrar uma outra imagem – ein anderer Schauplatz – capaz de ser via de miragem para a nossa ficção! A ousadia de Velázquez está em abandonar a estética do século XVII, cuja alusão corrente entre o reflexo do espelho, o brilho solar e o lugar soberano ocupado pelo rei estabelecia a personificação das qualidades a serem respeitadas. Pois ?o corpo do rei não era uma metáfora, mas sim uma realidade política: sua presença física era necessária ao funcionamento da monarquia? como observa Foucault[21]. Em seu espelho, porém, Velázquez oferece para nós o segredo do desejo…, como veremos.
Neste ponto, Velázquez entra na história do sujeito como um significante qualquer[22]. Pois essa presença do simbólico marcada pela inconsistência da imagem especular pela via do equívoco significante com a imagem (e a imagem aí, freudianamente, funciona como significante) é pura epifania. Daí encontrarmos diversas cenas deste quadro ?assinadas? por tantos autores quantas forem as exigências pulsionais de trabalho. Por exemplo, Picasso[23] em 1957 e suas 49 versões de Las meninas, Lacan em diversos momentos de seu ensino e Foucault, no polêmico ensaio Las meninas, em 1966, abrindo uma reflexão extremamente instigante sobre a arqueologia das ciências humanas.
O quadro, nos diz Lacan, funciona como o representante da representação, pois ?latente à imagem especular há a função do olhar?. O olhar, sendo diverso da visão e se suportando da construção perspectiva, dá ?asas ao desejo? na contingência de significação (Bedeutung). Nesta perspectiva, o quadro tem a mais estreita relação com a fantasia ($ à a). Como o quadro, a fantasia[24] é uma tela que esconde e indica o real. Era o que nos apontava Freud na carta a Fliess de 2 de maio de 1897: ?as fantasias servem, simultaneamente, à tendência a aperfeiçoar as lembranças e à tendência a sublimá-las. São fabricadas por meio de coisas ouvidas e das usadas posteriormente, assim combinando coisas experimentadas e ouvidas, acontecimentos passados (a história dos pais e antepassados) e coisas que foram vistas pela própria pessoa.?[25]
No seminário A lógica da fantasia (1967), Lacan ?distingue um um imperfeito, que ele escreve ?1?, de um ?um? perfeito, que ele escreve ?I?. E de sua diferença – entre uma relação fracassada e uma relação que, por ser miticamente consumada, aparece como a razão matemática deste fracasso – ele deduz a escritura I >1, cuja conseqüência lógica seria que a este 1 imperfeito falta alguma coisa (1 – a, escreve), o objeto do fantasma? (fantasia) [26]. Neste mesmo seminário, Lacan[27] destaca que esta lógica que a fantasia tem, imprime uma significação de verdade, a qual ocupa o lugar de um axioma, isto é, de uma proposição significante, articulada, colocada como verdadeira de saída e sobre a qual tomam apoio as outras proposições. Será nesta lógica que algo da sexualidade será subjetivado e a pergunta sobre sua origem traumática poderá encontrar ?um? destino…
Las meninas e o sintoma ou o desejo de Velázquez?
O que pinta, então, Velázquez…?
Digamos que ele pinta uma alegoria dos dois objetos sexuais (Sexualobjekte) originários do ser-falante – sich selbst (si mesmo) e das pflegende Weib (a mulher que cuida) – tal qual assinalava Freud em Para a introdução do narcisismo, caracterizando o narcisismo primário como a expressão dominante na ?escolha de objeto? (Objektwahl) sexual.? [28] Essa alegoria, propiciada no quadro pela dimensão do olhar e da tela em seu interior, situa Velázquez na história do sujeito.
Vemos então si presentificar uma seqüência de olhares ao infinito que não se encadeiam entre si mas remetem sem cessar ao tempo anterior de uma história (pulsional), e de ?onde a partir de uma certa data, historicamente situável, o sujeito, nomeadamente o pintor, se fez presente no quadro…?[29], como revela Lacan ($ à D). Já na tela vemos desdobrar diante de nós a função da moldura que cerne o espaço em um de dentro e um de fora, e o Witz[30] do pintor a nos pregar uma peça, quando em seu gesto acena para a ausência de significante que represente a mulher, seu gozo, e de onde emerge o significante de A barrado[31], S(A). Assinalando com sua arte o que ?cessa de se escrever?[32], Velázquez abre a possibilidade de acesso a um além, que Lacan desde A ética da psicanálise chamava o real.
O que resta, em realidade, é esse ?quadro vivo?, essa ?cena estranha?, que ocupou tantos críticos de arte, como lembrou Lacan e certamente como ele disse, por ?inscrever, ao mesmo tempo, o lugar de objeto (a) e a relação com a divisão do sujeito.?[33] Desse jeito, Velázquez nos lembra um dizer de Freud: ?é de todo modo duvidoso que se torne possível, sobre a base da elaboração do material psicológico, se obter a separação e a classificação das pulsões?[34]. Pois aí haverá ?uma mistura muito ampla e variável nas suas proporções…?[35] Haverá verdadeiramente cisão do ser-falante, o campo do analisável se perde cedendo lugar ao campo ficcional, às construções subjetivas propriamente ditas ($ à a).
?A pulsão escópica (Schautrieb), nos diz Freud, é mesmo auto-erótica no começo de sua atividade; ela tem porém um objeto, mas ela o encontra no próprio corpo. Somente mais tarde ela será conduzida (pela via da comparação) a trocar o objeto com um análogo do corpo alheio (fremd).?[36] O olhar, diz Freud, precede o ser olhado[37].
Assim, ao compararmos Vênus e seu espelho com Las meninas, encontramos em Velázquez um pintor que pinta como um poeta, que evoca o ?movimento? ora como um contemporâneo da ciência moderna, ora como o mais feliz de todos os ritmistas… No primeiro quadro é a beleza que está em jogo, o belo corpo dá forma à mulher que se espalha no primeiro plano da tela; no segundo, porém, a ação que o move é a do sublime, a sublime ação (sublimação[38]) de pintar os signos inapreensíveis do que causa o desejo, cuja ?ausência de forma?[39] (Kant) tende a provocar ?o esvaziamento da dialética?, imprimindo à imaginação uma mudança de parceiro (e por que não de sintoma?), pois na ação do sublime os signos se deslocam do entendimento à razão… É o poeta – como disse certa vez Lacan – que se endereça a essa razão. É nisso que a Psicanálise se aproxima da arte![40], onde a instância da letra é a razão do inconsciente desde Freud[41], como interpretou Lacan.
As quatro ?meninas? ? as duas pajens, a infanta Margarita e a anã ? no segundo plano do quadro podem muito bem significar momentos na construção de uma fantasia… Através da luminosidade e do jogo de cores memoravelmente distribuídas nessa cena magnífica, eis aí o desejo de Velázquez e por onde o olhar tornando-se objeto invocante nos faz ver as inquietações provocadas pela interrupção dos movimentos retratados na tela.
Rio de Janeiro, abril de 2001.
Resumo: Esse artigo retoma o problema posto por Lacan no seminário O objeto da psicanálise entre a função da perspectiva (que organiza o espaço para o sujeito) e a da moldura (que cerne o espaço em um de dentro e um de fora) ? ambas a partir do quadro e do espelho em Velázquez – para pensar uma ?teoria do desejo? quando da entrada do próprio sujeito no duplo campo do escópico e do invocante e a implicação do analista nessa empreitada.
Abstract: That article retakes the problem put by Lacan in the seminar The object of the psychoanalysis between the function of the perspective (that organizes the space for the subject) and the one of the frame (that sifts the space from within in and one of out) ? both starting from the picture and of the mirror in Velázquez – to think a “theory of the desire” when of the own subject’s entrance in the double field of the escopic and of the invonker and the analyst’s implication in that taskwork.
Bom dia, estou no curso com a Julieta e ela nos indicou o livro: Enquanto o futuro não vem.
O mesmo encontra-se esgotado, mas Julieta disse que tem alguns exemplares.
Eu tenho interesse em adquirir, pois vou utilizar no meu artigo da pós graduação.
Deixo meu contato para compra 54991062770
psicologaeloisalpereira@outlook.com
Desde já, obrigada.
Olá Eloisa, entraremos em contato com você. Obrigado pelo interesse!