Alguns criticam o diretor Paolo Sorrentino por sua suposta imitação de Fellini. Em A Grande Beleza (2013) essa tentativa de reproduzir o estilo do mestre se evidenciaria sobretudo na escolha das personagens exóticas – a santa, a editora anã… – e na celebração de Roma. Há nessa crítica um tanto de verdade e outro tanto de exagero. É claro que Sorrentino presta uma homenagem sincera a Fellini e tenta emulá-lo em alguns momentos, mas seu filme não se reduz a isso, mesmo porque seu olhar vem de outra época e jamais poderia reproduzir o olhar de um diretor de outra geração, com referências distintas. Sua Roma não pode ser jamais a Roma de Fellini, ainda que o cenário seja semelhante. Ainda assim – ou justamente por isso – ele consegue recortar na cidade recantos que surpreendem e encantam, como fazia o diretor de Roma. O tema do voyeur, do olhar de alguém que espreita sem ser visto é recorrente em várias cenas.
Jep Gambardella – interpretado pelo excelente Toni Servillo –, um jornalista que acaba de completar 65 anos, escritor de um único livro, apresenta-se como um homem dotado de sensibilidade. Talvez seja essa sensibilidade que o condena ao tédio, essa sensação que Lacan descreveu tão bem como o desejo de outra coisa: “Uma ocupação só começa a se tornar séria quando aquilo que a constitui, isto é, em geral, a regularidade, torna-se perfeitamente entediante.” (Seminário 5, As Formações do Inconsciente, p. 184) A rotina, para ele, é o que outros chamariam de diversão. Situado no centro da mundanidade, cercado pelos artistas, pelos ricos e descolados e pelos não tão ricos, ele percebe ao seu redor a marca da mediocridade. As cenas das festas intermináveis e da entrevista com a performer ilustram de forma exemplar essa mediocridade. Porém essa percepção não faz dele um histérico, tampouco um cínico. Não é um histérico porque ao apontar a mediocridade, não o faz desde uma posição exterior, como uma bela alma, mas se inclui na sua crítica. Não é um cínico porque ao contrário deste, não se compraz com a desordem do mundo para concluir que “as coisas não têm jeito” e justificar, desse modo, a sua posição.
Em meio a essa mediocridade, ele busca a “Grande Beleza”, mas afirma nunca tê-la encontrado. É evidente que essa é a grande ironia do diretor, pois a beleza está todo o tempo em volta do personagem, aonde quer que ele vá: nos lugares, nas obras de arte, nos corpos, na paisagem, até mesmo naquilo que ele identifica como mediocridade. Jep, porém, não é capaz de reconhecer a beleza, pois está imerso nela. Como os peixinhos da piada, ele não sabe o que é “água”. Falta-lhe o distanciamento necessário para perceber a beleza que busca e a falta desse distanciamento o impede de escrever o seu segundo romance – o que constitui o seu sintoma.
A beleza não é considerada um tema nobre hoje em dia: colocada sob suspeita de superficialidade, desprezada pela arte contemporânea, que se ocupa do feio e do repelente, acusada de reproduzir a ideologia da classe dominante, ela não possui dignidade suficiente para ser eleita como uma meta. Volta e meia algum militante de causas obscuras posta nas redes sociais um protesto repleto de ódio contra a “ditadura da beleza”, levando-nos a supor que quando admiramos Bach ou Bündchen praticamos a servidão voluntária ao capitalismo. Já Freud, em O Mal-Estar na Civilização, considera a beleza como uma das formas de combater o sofrimento. Ele se refere ao seu caráter “suavemente embriagante”, porém considera que a beleza fornece pouca proteção contra o sofrimento e conclui que a psicanálise não tem muito a dizer sobre ela. Lacan retoma esse comentário de Freud, mas em outra linha: para ele, a beleza é um engodo, uma última barreira que o sujeito ergue antes da pulsão de morte. Daí para os seus seguidores falarem mal da beleza é um passo (para trás, como acontece quando se segue sem pensar).
Na sua jornada noctívaga Jep atravessa as festas, as conversas, as relações mantendo sempre um ar blasé em relação a tudo, até mesmo em relação à morte. A única exceção capaz de abalá-lo é a recordação dessa mulher de quem pouco sabemos, a não ser que foi um amor da juventude. Na cena que representa a sua lembrança, ela se desvela e se recobre suavemente à luz da lua que se alterna com a sombra, replicando o seu gesto. Lacan apreciava muito a descrição do falo enquanto recoberto por um véu, imagem que ele foi buscar nos ritos iniciáticos da Antiguidade, e que ilustra a ideia do significante do desejo que não se pode acessar diretamente. Para Jep essa imagem remete à ideia do significante organizador, do Um que confere valor ao objeto e dá sentido à vida.
O filme de Sorentino provoca em nós essa sensação de suave embriaguez a que se refere Freud. Sua presença na atualidade nos faz pensar numa referência nostálgica à defesa estética contra o sofrimento mencionada em O Mal-Estar na Civilização. Mas ele não se limita a isso: ao mesmo tempo ele nos lembra o triunfo da mediocridade – soberana na mídia, onipresente nos laços sociais – do qual todos participamos. Nesse sentido, a sua própria beleza, suspeita de superficialidade, pode ser dolorosa como o corte da borda aguçada de uma folha de papel, que atinge apenas a superfície da pele, mas secciona as terminações dos nervos.
Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, editor de Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012).