Antonioni vidente

O frame (ou fotograma, pois o filme é de 1966) de Blow-Up é ilusório. Isolado da cena à qual pertence, ele transmite uma impressão de delicadeza. Ao contrário, o fotógrafo Thomas, vivido por David Hemmings, está muito distante de qualquer traço delicado: grosseiro, explorador, misógino, preconceituoso, racista, oportunista, ele é o oposto do ideal da geração do Flower Power que o filme supostamente retrata.
Não que seja desprovido de sensibilidade artística. Ao contrário: é condição da sua profissão de fotógrafo um contato diuturno com a beleza, que ele reconhece até onde ela é menos esperada, como numa hélice adquirida impulsivamente numa loja de antiguidades. Porém, esse gesto duchampiano se esgota em si mesmo: uma vez tendo se apropriado da beleza, ele não sabe o que fazer com ela – deixa que os entregadores abandonem a hélice encostada num canto do seu estúdio.

Já com as pessoas, Thomas é incapaz da sensibilidade que esbanja com os objetos inanimados. Ele é rude com todos, sobretudo com as mulheres, com as modelos que dele dependem para sua carreira e que ele trata com crueldade nas sessões de fotos e explora fora delas. Com a personagem de Vanessa Redgrave, que aparece nesta cena, ele mantém um joguinho meio boçal porque ela depende dele para conseguir algo. A exceção a essa regra é o tratamento que ele dispensa ao seu editor, a quem paparica a fim de conseguir publicar um livro de fotos “sérias”.

Comentei em outro lugar1 esse personagem contraditório, que destoa da sua época e do seu meio. Afinal, o que Antonioni pretendia com esse personagem “irrealista” para um filme ambientado nos anos 60, em meio aos ideais da contracultura? Seria um exemplo da sua abordagem descomprometida com a realidade? Ou, quem sabe, poderíamos pensar o contrário – que ao criar tal personagem, o diretor exerce um olhar preciso, quase premonitório?
O projeto radical da contracultura era o de uma revolução tanto social quanto “in the head”. Surgida em pleno declínio da função paterna, exaltava os ideais anti-fálicos e preconizava um mundo que não fosse regido por aquelas que eram identificadas como as formas mais explícitas do falicismo: o poder, a disputa, a autoridade, a separação dos sexos (“gêneros”, segundo o jargão do discurso universitário norte-americano, derivado do livro de Stoller, de quem Lacan2, no seu Seminário 18, De um discurso que não fosse semblante, diz ironicamente que ele teria se beneficiado muito se tivesse lido Lacan).

Porém, ainda que o capitalismo não tenha morrido, como sonhavam os mais exaltados – ao contrário, ele parece demonstrar uma extraordinária habilidade em sobreviver às próprias crises e adaptar-se a partir delas – não se pode negar que aquilo que na época da contracultura constituía rebeldia, na atualidade está do lado da norma. Como nota Charles Melman: “Ora, hoje podemos observar que a palavra de ordem da ideologia liberal é assegurar o gozo a todos. E isso se tornou a nova moral. A nova moral é que cada um tem o direito de satisfazer plenamente seu gozo, seja quais forem suas modalidades.”3
A retirada das interdições sociais sobre o desejo, porém, não contribuiu para melhorar a relação entre os sexos. A novidade nesse campo foi a expansão da clivagem entre amor e desejo – que Freud diagnosticava na sua clínica como exclusiva do homem – para o lado feminino. Com um detalhe: a degradação da vida amorosa, parte mais importante dessa clivagem, continua sendo um terreno onde os homens se sentem mais à vontade (talvez pelo caráter todo-fálico do seu gozo). Terreno fértil para a proliferação de todos os tipos de preconceito, para surpresa de quem esperava uma era de aceitação das diferenças.
Essa surpresa tende a aumentar quando se constata que essa degradação hoje em dia não está mais do lado do “inimigo”, e sim do próximo. Por isso todos os chocam com as reportagens4 sobre o assédio sexual entre adolescentes em escolas de classe média-alta (assédio não no sentido da correção política, mas de violência sexual mesmo). Comparado ao estilo cafajeste à laise dos boyzinhos de hoje, o machismo tradicional poderia muito bem passar como a fina flor do cavalheirismo.
Como em outras frentes, o combate da contracultura ao falocentrismo errou o foco. O termo “falocentrismo”, empregado para se referir à teoria freudiana, só pode significar o falo como centro, e não o homem como centro. Se não se trata do órgão, mas do significante, como acrescenta Lacan, o acesso ao falicismo está aberto para os falasseres, independente da sua anatomia (ou alguém ainda repetiria o slogan dos anos 60, de que o mundo seria melhor se os países fossem governados pelas mulheres?).
Porém, além disso, o falo é o significante que fornece o padrão segundo o qual podemos nos entender no que diz respeito ao desejo e ao gozo. A nossa cultura, contudo, parece ser a única em que o único ponto de concordância é que ninguém se entende. Sem referências simbólicas, os sujeitos passam a se guiar por aquelas imaginárias, ditadas pela opinião da maioria, espelho coletivo pelo qual todos se medem. Daí a importância da mídia, bicho-papão das redes sociais, as quais, por sua vez, competem com ela na criação de novos modelos de conduta (ensinando o que devemos comer, vestir, falar, etc.) e novos moralismos (o que devemos aceitar e o que devemos rejeitar).
Nesse mundo de valores que não se ancoram em nenhum ponto fixo, os teóricos do discurso que Lacan denominou universitário não conseguem disfarçar a sua impotência teórica, repetindo que tudo é “líquido”, numa espécie de diarreia intelectual que mimetiza a realidade estudada. Como não poderia deixar de ser, surgem também as velhas vozes que prometem a estabilidade em meio ao caos, seja pregando o retorno a valores conservadores, seja vendendo o gato do socialismo do século 19 como a lebre do século 21.
O que nos conduz de volta a Thomas, o personagem de Blow Up. Imaginado nos anos 60, ele é na verdade uma criatura contemporânea: camaleônico, ele se paramenta com os traços da modernidade para repetir o velho oportunismo, recita os clichês de esquerda para se locupletar como a direita, posa com um discurso do bem para se dar bem. Talvez Antonioni tenha captado com suas antenas de artista que aquilo que estava latente sob a utopia do Flower Power e de Maio 68 era na realidade o avesso dos ideais libertários, da ausência de autoridade. Ao contrário, tratava-se da autoridade desregulada do supereu e sua exigência de um gozo sem limites. “É ao que vocês aspiram como revolucionários, a um mestre. Vocês o terão.”5 – Lacan teve a ousadia de afirmar aos estudantes de Vincennes em 1969.

Notas
1. “Blow-Up ou A crise do sentido”. In: TEIXEIRA, M. R. O espectador ingênuo. Salvador: Ágalma, 2012.
2. LACAN, J. O Seminário, livro 18, De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: J. Z. E., 2011.
3. MELMAN, C. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC, 2003, p. 60.
4. TRINDADE, E. e VINES, J. “Abuso sexual entre adolescentes”, Folha de S. Paulo, 30/4/2013.
5. LACAN, J. O Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: J. Z. E.,

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