Considerações a respeito de um princípio ético da psicanálise. Em torno de um caso clínico.

Sidnei Goldberg

Sidnei Artur Goldberg1

Your Mother Should Know
(Lennon-McCartney)

Uma questão recorrente em nosso campo diz respeito ao tema da Ética. A pergunta é: haveria uma ética própria da psicanálise ou deveríamos pensar numa ética geral, frente à qual, qualquer pessoa, analista ou não, pudesse se posicionar? Em artigo que escrevi para o Segundo Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise, abordei uma questão que delineia o que poderia ser considerado como um princípio ético da psicanálise. Se entendermos por princípios éticos as diretrizes que regem as ações dos psicanalistas, podemos, sim, falar em ética da psicanálise. Nesse caso, quais seriam os fundamentos que balizariam esta ética, que não fossem simples standards técnicos? O tema da ética da psicanálise está presente desde Freud. Em seus Artigos sobre Técnica2, ele apontou a transferência como ponto de resistência e, simultaneamente, motor da cura, mostrando que grande parte do sofrimento dos sujeitos estava relacionada ao fato de eles estabelecerem um laço com determinadas pessoas que iam encontrando na vida, colocando-as num lugar a que chamou de ?clichê estereotípico? ou, segundo a terminologia de Jung, ?imago?. Lacan estende essa idéia e mostra que a estes ?outros?, colocados em posição privilegiada de grande Outro, o sujeito se oferece em posição sacrificial de gozo. Por sua vez, Nasio aponta uma tendência do sujeito humano a antropomorfizar o grande Outro, que, no entanto, é apenas a cadeia de significantes na qual todos estão alienados.

Apesar de, nos Artigos sobre Técnica, propor uma série de preceitos técnicos ? tempo das entrevistas, dinheiro, divã, etc. ? Freud ressalta que esses preceitos referem-se ao modo por ele encontrado para conduzir os processos analíticos. As pessoas poderiam utilizar outros preceitos técnicos, sem, porém, abandonar alguns pontos essenciais, tais como a associação livre e a dissolução da transferência num momento mais avançado do processo analítico. Em ? Recordar, Repetir e Elaborar3 ? afirma que aquilo que não puder ser recordado na fala, será repetido na transferência, ressaltando a idéia da transferência como motor da cura. A posição que o sujeito toma frente ao Outro no processo de análise ? também conhecida como neurose de transferência ? será instrumentalizada de forma que o analista possa dirigir o sujeito a um ponto em que ele tenha a possibilidade de não mais repetir o laço marcado pelas características infantis. Esse laço poderá ser eventualmente encenado em jogos sexuais, mas não será reproduzido sob a forma compulsiva de um retorno do recalcado. Tendo em vista essas questões, pretendo abordar um dos princípios condutores da ética psicanalítica, o da dissolução da transferência, que visa possibilitar ao sujeito deixar de colocar-se numa posição de gozo em relação aos seus semelhantes postos, estes, no lugar do grande Outro. A cura psicanalítica destaca portanto a dissolução da transferência como um dos pontos éticos centrais da psicanálise. Em outros termos, trata-se de evitar que qualquer semelhante possa ocupar o lugar do Outro, ou seja, que qualquer semelhante venha a ser tomado como Outro. Ou, ainda, evitar que ocorra a absolutização do pequeno outro (os semelhantes) na posição do grande Outro. Para reportar esse processo, passemos então ao relato de um fragmento clínico.

Dois tipos de circuitos de gozo Freya costuma dizer que ?nunca consegue descobrir nada?. Afirma que outras pessoas fazem análise e conseguem entender coisas, ?eu não consigo, acho que sou muito burra para isto.? As pessoas a quem se refere são mulheres: amigas, pessoas para quem trabalha ou da família. Todas fazem ou já fizeram alguma terapia ou algo que o valha e principalmente são providas das qualidades que lhe faltam, tais como: marido, namorado, filhos, carreira, dinheiro e por aí vai. Existem dois tipos de circuito compulsivo em que Freya entra de forma alternada. No início de sua análise aparecia preponderantemente o primeiro, que consiste nas seguintes etapas: algo escutado aleatoriamente sobre os sintomas de alguma doença faz com que ela comece a pensar que pode estar sofrendo do mesmo mal ou de algum correlato. Lembremos o que Freud nos diz da contaminação histérica em enfermarias: é claro que não se trata de pura imitação, é preciso que haja uma identificação com as causas. O segundo momento é o que ela define como ?eu preciso descobrir o que é, eu quero ter certeza do que é que eu tenho, e é prá já.? Neste ponto ela começa a perguntar para as pessoas amigas o que acham que pode ser e o que é que ela deve fazer. Simultaneamente marca hora em algum médico. Na consulta procura conduzir o médico a lhe dizer o que é que ela pode ter na pior das hipóteses. Sai sempre com requisição de vários exames. Quando isto não acontece, acaba procurando outro médico até que algum a mande para os exames. A terceira etapa consistia no desespero em saber o resultado dos exames. Comenta às vezes que é uma sorte ter um seguro-saúde e não precisar pagar pelos exames clínicos. Este é um ponto de engodo, pois o pagamento é muito mais caro, pois o faz com o próprio corpo. Começa então a telefonar, insistentemente, para o médico e para o laboratório, na tentativa de ter acesso imediato aos resultados. O processo chega a tornar-se cômico a ela mesma, pois é reconhecida pela voz, sendo identificada pelo nome pelos atendentes da central telefônica que atende a rede de laboratórios. O tempo de espera é angustiante. Quando, finalmente, recebe a resposta de que não tem nada, sente-se extenuada. Pergunta-se, então, por que sempre entra nessas histórias. Passa um tempo e surge outra questão corporal que a faz perguntar novamente aos médicos: ?O que é que eu tenho??. Freya chega à sessão extra que pedira e diz: ?eu nem sei se vai adiantar ter vindo aqui, mas é que eu cismei agora com uma nova ? diz rindo ? eu tô louquinha. Enfiei uma coisa na cabeça, mas resolvi passar aqui primeiro para ver se você me ajuda. Eu cismei que eu tô com câncer no pulmão. E se eu estiver com alguma coisa e ninguém sabe? Com meu pai, demoraram para descobrir…? Eu lhe pergunto por que câncer e por que no pulmão. Ela diz que não sabe. A única coisa que lhe ocorre é que seu pai morreu de câncer no pulmão seis meses antes. Mas por que só agora lhe ocorre o pensamento sobre o próprio câncer? Ela não tinha a menor idéia. ?Na verdade eu estava indo marcar uma consulta com um médico porque eu quero fazer uma chapa no pulmão, mas tenho medo que me mande fazer outros exames, como ressonância (medo pela possível demora em obter o resultado como também em razão da aflição por ter que ficar dentro do aparelho de ressonância), aí eu resolvi passar aqui para ver se eu conseguia tirar esta idéia da cabeça, mas eu posso ter mesmo, não é, o que você acha? Queria ver se você me explica porque que eu tenho que começar com estas histórias?. (essas histórias são o que chamei de circuito compulsivo) ?Mas eu sei que você não pode me dizer, eu é que tenho que descobrir, só que eu não consigo. Acho que eu sou muito burra, eu nunca consigo entender nada.?

Este me pareceu um momento interessante em sua análise porque pela primeira vez me procurou antes de iniciar o circuito. Poderia dizer, fazer uma imagem, de que ela se encontrava à ?beira do precipício?, ou seja, no momento que antecede ao que ela chama de ?chapa?. Nas outras vezes, sempre chegava quando já estava em meio a consultas e exames. Não era raro desmarcar sessões por conta dessas ocupações. Perguntei, na falta de outras perguntas, em que momento lhe ocorrera a idéia de câncer no pulmão pela primeira vez. Ela disse que não sabia, que não se lembrava mas de que tinha sido há poucos dias, talvez na sexta ou no sábado. Estávamos em uma segunda-feira. Insisti, disse que talvez fosse importante lembrar no que pensava quando a idéia surgiu. Freya disse então que, na sexta à noite, tinha ido dormir e acordou para tomar água. Quando passou pela sala, sua irmã assistia a um filme do tipo ?Plantão Médico?. Viu uma cena em que dois médicos punham uma chapa de pulmão diante da luz e diziam espantados que ?aquele paciente parecia não ter nada, quem diria…? Qual a doença? Ela não sabe, só viu esse trecho, mas compreendeu que o paciente estava mal e que até então os médicos não sabiam. Percebe então que o paciente do filme está no lugar que ela imagina para si, mas diz que não foi exatamente neste momento que lhe apareceu a idéia do câncer em seu pulmão.

Na quarta-feira anterior, ela havia visto na televisão uma notícia sobre a morte do deputado Eduardo Mascarenhas, só que não informaram a causa da morte. No sábado, leu uma pequena nota em um jornal dizendo que ele morrera de câncer no pulmão. ?Sim, talvez tenha sido neste momento que tenha me vindo a idéia?. Este novo dado pareceu-me insignificante em relação à cena do filme, mas é mesmo desta forma que se processa o mecanismo do deslocamento: o que é importante nos aparece como banal e vice-versa.

Depois de um momento de silêncio, Freya ri e diz: ?você não está lembrando nada em relação a este nome, não é ??. ?O que ??, pergunto. Ela relembra então o tempo em que seu pai estava no hospital, e passou um dia tendo delírios (seu câncer no pulmão foi descoberto a partir de sintomas neurológicos, pois já se evidenciava uma metástase no cérebro). Ele havia sido medicado por um neurologista que atribuiu os delírios ao tumor no cérebro. Freya havia me telefonado dizendo que a auxiliar de enfermagem, ao chegar no quarto, chamara seu pai de ?seu? Eduardo Mascarenhas.

Ela explicou que este não era seu nome, mas a auxiliar informou-lhe que seu pai havia dito que seu nome era mesmo Eduardo Mascarenhas e que era assim que queria ser chamado, pois acreditava estar sendo vítima de um complô. Freya achou que a nova medicação prescrita pelo neurologista poderia estar causando os delírios. Pensou em consultar um psiquiatra, queria saber o que eu achava. Concordei com a idéia e disse que iria dar um ?chute?, pois eu nem conhecia seu pai ? parecia-me interessante que ele houvesse ?escolhido? para si o nome de um deputado (o complô era político) que também exercia a psicanálise e a psiquiatria. De fato, o psiquiatra chamado alterou a medicação e ele não teve mais delírios até a sua morte, alguns meses depois.

O que me parece importante, nessa lembrança, é que Freya aparece numa posição diferente daquela em que sempre se coloca: ?eu sou burra, não sei nada?. Nas duas situações, de forma inusitada, o que ela articula ganha valor. Num primeiro tempo, em relação ao saber médico (o neurologista era um medalhão) e num segundo, em relação ao não-saber do analista, que, naquele momento da transferência, não percebeu qual o alcance do representante da representação, Eduardo Mascarenhas. Concomitante ao não-saber do analista (seu esquecimento), um momento de báscula se abre onde ela pode tramar uma rede de deslocamentos entre as cenas e o seu sintoma.

Nesse momento, a sessão foi interrompida apesar de seus protestos, já que queria que eu lhe explicasse exatamente o desenrolar das coisa

1 Sidnei Artur Goldberg: psicanalista, editor da revista de psicanálise “Textura”, diretor da coleção Discurso Psicanalítico da editora Agalma, co-autor de “Sobre o Desejo Masculino”, ed. Ágalma, “Temas da Clínica Psicanalítica”, ed. Experimento, “Sexualidade Feminina/Masculina” ed. Experimento.
2 FREUD, S. ?Artigos sobre Técnica?.In: Obras completas, vol XII, E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
3 FREUD, S. ?Recordar, Repetir e Elaborar?.In: Obras completas, vol XII, E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, 1976

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O Supereu e o Imperativo de Gozo

Marcus do Rio Teixeira

Quando recebemos o convite, feito por Angélia Teixeira ? a quem agradecemos a oportunidade de estar aqui ? para falar sobre este tema, nos colocamos inicialmente uma questão. Esta questão, que nos pareceu um tanto ingênua, diz respeito à naturalidade com que nos referimos à definição lacaniana do supereu. De fato, esta definição já faz parte das nossas referências teóricas há tanto tempo que costumamos esquecer ? ou, no caso das novas gerações de analistas, saltar ? a definição freudiana, evitando cotejá-la com a leitura de Lacan. A nossa questão poderia ser resumida desta forma: Lacan está sendo coerente com Freud quando fala do supereu?

A abordagem do supereu em Lacan nos chama a atenção, logo de início, pelo caráter provocador da sua definição aforismática, que inclui o conceito de gozo, considerando-o uma injunção feita pelo supereu ao sujeito. À primeira vista esta definição parece entrar em total contradição com a definição freudiana. Primeiramente porque, se abordarmos o conceito freudiano de supereu superpondo-o ao conceito de gozo, constatamos, de imediato, que para Freud o supereu só poderia ser definido como instância que interdita, que proíbe, que tolhe o gozo ? aí entendido, no caso, como gozo sexual, porque é preciso frisar que para Freud o gozo de que se trata é, sem dúvida alguma, o gozo sexual. O supereu freudiano é, portanto, a instância que vai interditar o acesso do sujeito ao gozo sexual, e Freud lista todas as conseqüências sintomáticas decorrentes, tanto da tentativa de cumprir esta proibição (auto-exigência neurótica), quanto das tentativas de burlá-la (sentimento de culpa).

Passamos muito rapidamente por esta parte, uma vez que todos vocês possuem bastante familiaridade com o tema. O supereu aparece na obra de Freud, sobretudo em O Eu e o Isso, como uma instância relacionada com a consciência moral, com a proibição, com o sentimento de culpa. Freud se refere a ele como herdeiro do complexo de Édipo, ou seja, como uma introjeção da autoridade das figuras parentais, notadamente da figura do pai ? do pai real, como diria Lacan ? resultante dos desdobramentos da fase final do complexo de Édipo. Ao que parece, ainda estamos aqui em uma concepção espacial do dentro e do fora (diversa da topologia moebiana de Lacan), na qual algo que vem do exterior, ou seja, essas proibições provenientes do casal parental, é incorporado pelo sujeito. Há também toda uma discussão entre os analistas da época e mais tarde entre os pós-freudianos sobre a origem do supereu. Fala-se de um supereu que seria herdado diretamente do supereu paterno e se discute a existência de um supereu arcaico ou a proeminência da cultura sobre algo de inato. Para Freud haveria ainda um problema específico no que diz respeito ao supereu feminino: uma vez que para as meninas faltaria um bom motivo para abandonar o Édipo, elas permaneceriam nele por um tempo ?indeterminado? e a sua dissolução seria incompleta. Como conseqüência, diz ele, a formação do supereu nas mulheres seria prejudicada e essa instância não conseguiria adquirir a intensidade que dela seria esperada. Esta observação controversa de Freud não é, no nosso ponto de vista, tão discutida quanto mereceria entre nós. De todo modo, é curioso que os analistas prefiram citar mais uma frase atribuída a Freud, que diz do seu não-saber sobre a posição feminina, do que outras, como esta, que revelam um saber provocador.

Um outro ponto que se destaca na concepção freudiana do supereu é a sua extrema crueldade ? esta é a maneira como Freud a ele se refere ? sua exigência desmedida, sua falta de conexão com a realidade. À medida que o eu se esforça no sentido de alcançar uma nobreza moral, um estado análogo à santidade, que ele busca atender essas exigências que são justamente impossíveis de serem cumpridas, o supereu se torna ainda mais exigente. Para Freud, portanto, o supereu é uma instância cruel e que não tem noção da realidade. Suas exigências desmedidas não são, na realidade, simples exigências morais que o sujeito poderia cumprir desde que aceitasse abrir mão de seu gozo. Ao contrário, essas exigências tornam-se maiores e mais absurdas à medida que ele busca atendê-las.

Ao consultarmos, para esta apresentação, o Index de Henry Krutzen ? que foi de grande utilidade ? chamou nossa atenção a extrema escassez das referências de Lacan a este conceito na sua obra. Se compararmos com outros termos, como por exemplo, o Ego, o Moi, veremos que eles possuem uma quantidade muito maior de citações na obra de Lacan, ao longo do seu Seminário ? sendo citados várias vezes ao longo das aulas de um mesmo Seminário ? e dos Escritos. O supereu, por sua vez, aparece predominantemente nos primeiros Seminários, sobretudo no Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud; e nos Seminários imediatamente posteriores até o 7 ou 8. Em seguida as referências se tornam cada vez menores e mais espaçadas. Às vezes, elas consistem em uma única frase em todo um ano de ensino. Finalmente, há essa famosa referência que aparece no Seminário 20, Encore, que na verdade é precedida de uma formulação mais completa no Seminário 18, De um discurso que não seria do semblant. Em seguida, uma única citação no Seminário L?insu, e isso é tudo que existe nos Seminários de Lacan sobre o supereu. Nos Escritos, o conceito comparece mais longamente em seu artigo sobre Psicanálise e Criminologia, e em seguida ele se resume praticamente a uma frase, uma frase de efeito que Lacan repete insistentemente, citando a si mesmo ? sua definição do supereu como ?esta figura obscena e feroz?. Lacan não se estende muito além desta definição.

Não pretendemos fazer aqui uma leitura exaustiva da concepção lacaniana do supereu ao longo dos Seminários, mas diríamos, brevemente, que no Seminário 1, quando do seu retorno a Freud, trata-se para Lacan de um trabalho de precisão, de depuração dos conceitos freudianos. A leitura lacaniana do supereu situa-se nessa linha de trabalho: trata-se de tomar o conceito freudiano e lapidá-lo, aparar suas arestas, depurando-o do ranço da ego-psychology, até chegar a uma definição essencial. O que é interessante nesse início do seu ensino, nos anos 53/54, é ele que praticamente antecipa a sua definição posterior do imperativo. Ele já afirma então que o supereu se define como sendo um imperativo; mais ainda, ele o reduz ao enunciado, a uma manifestação do Simbólico, uma espécie de ponta do Simbólico que se destacaria e que restaria como enunciado puro. Ou seja, ele remete o supereu ao campo da linguagem, ao enunciado e ao significante. No Seminário 3, As psicoses, Lacan vai novamente aproximar o supereu do significante. Retornaremos a este ponto mais adiante. Além disso, ele vai destacar na definição freudiana o aspecto de ?lei insensata? ?é assim que ele denomina o supereu ? uma lei que não tem noção de realidade, uma lei sem sentido e, como ele diz, uma lei que, no limite, é a própria negação ou o próprio desconhecimento da lei. Trata-se de uma lei tão exagerada que, no limite, ela é a sua própria negação. Observem, porém, que nesse período Lacan ainda permanece próximo à definição do conceito de supereu no sentido estritamente freudiano. O supereu nesse momento ainda é um conceito que ele retoma de Freud e que ele procura depurar, mas que ele interpreta de modo fiel a sua acepção freudiana. Por exemplo, ele justifica a sua definição do supereu como figura obscena e feroz remetendo esta ferocidade à crueldade freudiana, tal como Freud define o supereu ? trata-se da crueldade em relação ao eu.

Nos anos seguintes, encontramos referências ao supereu aproximando-o da Voz, no Seminário 10, A Angústia, e outras definições esparsas que vão se estender ao longo desses primeiros Seminários. Cabe destacar, por exemplo, a distinção da instância do Ideal do eu. Finalmente, no Seminário 18, De um discurso que não seria do semblant ? preferimos manter este termo no original por tratar-se de uma tradução muito problemática ? Lacan vai retomar de forma um tanto repentina este conceito, em passagens curtas, porém extremamente marcantes, nas quais destaca a sua importância na teoria freudiana e aponta a sua relação com o gozo. No decorrer do Seminário ele comenta, de passagem, que ?o supereu é a única coisa da qual jamais tratei?. Ele vai anunciar então, no final da última aula deste Seminário: ?eu trago aqui alguma coisa para vocês guardarem na mão…? Em seguida, anuncia de maneira bombástica que ?na verdade, a grande novidade da segunda tópica de Freud é o supereu?. Ele vinha de falar, justamente, do pai da horda primitiva, e nessa passagem aproxima o supereu deste pai que é, justamente, o ao-menos-um que escapa à castração: ?E o que é que esse Pai com efeito diz, no declínio do Édipo? Ele diz o que diz o supereu. O que diz o supereu ? não é por nada que eu nunca o abordei verdadeiramente ? o que diz o supereu é ?Goza!??
Segundo pudemos verificar, esta é a primeira formulação do supereu como imperativo de gozo, apesar de ser menos citada entre nós que a formulação posterior do Seminário Encore. Lacan vai finalizar com uma citação da Bíblia, extraída do Eclesiastes: ?Goza tanto quanto tu és, goza. Goza com a mulher que tu amas.? E ele conclui de modo irônico, dizendo: ?É mesmo o cúmulo do paradoxo porque é justamente do amor que vem o obstáculo?. Trata-se aqui de uma referência à famosa clivagem freudiana do desejo masculino entre o objeto do amor e o objeto do desejo. Lacan passa o Seminário seguinte sem voltar a se referir ao supereu e, exatamente um ano depois, no seu Seminário 20, Encore, ele continua como se não houvesse feito uma interrupção, retornando exatamente ao ponto onde havia parado e falando do gozo, numa última referência ao supereu, na qual reafirma que ele é o imperativo do gozo ? é essa instância que diz: ?Goza!? Mais adiante, há uma única referência no Seminário 24 e mais nada.

A primeira impressão ao fazer esse percurso da abordagem do supereu na obra de Lacan é que ele parece inicialmente não saber muito bem o que fazer deste conceito freudiano, que é uma espécie de batata quente em suas mãos. Entretanto, esta formulação tardia do Seminário 18, parece nos indicar uma outra via, onde Lacan na verdade procura dar uma nova roupagem a este conceito, onde não se trata mais de uma depuração do conceito freudiano, mas de uma leitura propriamente sua, uma apropriação lacaniana do conceito do supereu. Nesse sentido, nos parece que ele adota uma abordagem que, apesar de estar delineada no conceito de Freud, avança em outra direção. Voltemos aqui à questão que levantamos no início: Freud e Lacan estão dizendo a mesma coisa quando falam do supereu? Eles estão falando do mesmo gozo? Para Freud, como vimos, trata-se sem dúvida do gozo sexual. E quanto a Lacan, seria o mesmo? A resposta a esta questão é essencial para respondermos esta questão, pois se ambos falam do gozo sexual, haveria uma contradição, uma vez que, segundo Freud, o supereu seria uma instância interditora desse gozo, enquanto para Lacan seria uma instância que proferiria um comando ao gozo. Por outro lado, se Lacan estiver se referindo a um gozo que não o sexual, um gozo, por exemplo, do fracasso, do sofrimento neurótico, do sintoma, poderíamos dizer então que se trata de uma leitura da concepção freudiana que não entraria em contradição com aquela, mas que buscaria repensá-la à luz de um novo aparelho conceitual.

Para esclarecermos este ponto, devemos lembrar de como o próprio Lacan define o gozo sexual. Para ele, trata-se de um gozo que diz respeito ao gozo fálico, um gozo que é limitado pelo significante, e que tem, necessariamente, que sofrer uma escansão, cujo modelo princeps é o orgasmo masculino. Ou seja, é preciso haver uma subida e um declínio da tensão, uma pausa necessária até mesmo biologicamente, para que o sujeito goze novamente. E quanto ao gozo imposto pelo supereu, será que poderíamos pensá-lo da mesma forma? Uma pista estaria na observação feita por Freud acerca das exigências feitas pelo supereu, as quais ele considera exageradas, desmedidas, incompatíveis com a realidade. Neste caso, o mandado de gozo do supereu seria impossível de ser cumprido. Este gozo seria, talvez, próximo não do gozo fálico, do gozo sexual, mas sim do que Lacan denominou gozo do grande Outro. Lacan parece dar uma pista nesta direção quando aproxima o supereu do pai da horda primitiva, daquele que é, justamente, o pai que escapa à castração.Trata-se do grande Outro, mas do grande Outro não castrado. Este imperativo de gozo imposto pelo supereu diria respeito, portanto, a um gozo do grande Outro, um gozo não-sexual, não-fálico, ilimitado, que não encontraria algo que pudesse detê-lo, uma barreira. A injunção ao gozo seria impossível de ser cumprida, justamente, porque, caso fosse cumprida, seguindo ao pé da letra o imperativo do supereu, o que o sujeito encontraria seria sua própria morte, o seu desaparecimento enquanto sujeito. Pois uma vez que o sujeito se arrisque a ir ao extremo do gozo do Outro, deste gozo que não possui limite, a única coisa que poderá detê-lo será, justamente, a morte. Estamos falando aqui de um gozo que consome o sujeito no sentido que uma vela é consumida pela chama, cujo modelo mais próximo na nossa clínica é, precisamente, o gozo do toxicômano, que vai até o extremo, até encontrar a overdose. Lacan retomaria portanto a formulação freudiana do supereu, resumindo-o ao puro imperativo que impede o acesso do sujeito ao gozo fálico, um comando a avançar até o extremo do gozo do Outro, que poria em risco o sujeito.

Quanto ao interesse decrescente de Lacan por este conceito, podemos entendê-lo como uma constatação de que o supereu não era necessário no seu aparato conceitual em uma fase posterior do seu ensino. Isto porque, na medida em que ele trabalha o conceito, reduzindo-o ao enunciado, aproximando-o do significante, a instância freudiana é de certa forma absorvida pelo significante-mestre, pelo S1, que Charles Melman vai chamar de manifestação concreta do imperativo categórico. O S1 assume na teoria lacaniana as funções de comando, de imperativo, que cabiam ao supereu, com a vantagem de não incorrer no risco de psicologização que a segunda tópica propicia, por remeter este comando a um puro significante. Restaria a articulação com a dimensão do gozo, que permite pensar a posição subjetiva na situação de sujeição ao Outro e aquilo que o sujeito vivencia nesta situação como gozo. Talvez isso explique a volta tardia de Lacan sobre esse conceito e a sua referência elogiosa no Seminário 18.

Para concluir, colocaríamos uma última questão: qual seria a pertinência do conceito de supereu na contemporaneidade? Faria sentido, seguindo Lacan, retomar ainda um conceito freudiano como este ou deveríamos abandoná-lo, na medida em que na obra final de Lacan ele de certo modo não lhe confere a mesma importância que outros conceitos?

Parece-nos que o supereu possui uma pertinência na clínica contemporânea, embora de uma forma naturalmente diferente daquela que lhe dava Freud. Esta diferença se daria no sentido de que ele se faz presente, hoje em dia, como um imperativo do gozo que provém, não mais das instâncias do casal parental, desses grandes Outros reais a que Freud se referia, tampouco desse grande Outro não barrado, do Deus do Antigo Testamento, mas de um outro tipo de lugar que seria, justamente, aquele que nós designaríamos, genericamente, como o social. Dessa forma, o imperativo superegóico, na contemporaneidade, chegaria a nós proveniente, não mais da família ou da tradição religiosa, mas do anonimato dos discursos a que somos submetidos pela cultura, pela mídia. É desde este lugar que nos chegam os imperativos do supereu, imperativos que conhecemos bastante e dos quais poderíamos citar alguns dentre os mais conhecidos, os mais freqüentes na nossa sociedade, que se apresentam sempre sob a forma de enunciados, como Lacan ressaltou. Quais seriam estes imperativos na sociedade contemporânea?

Poderíamos citar, dentre eles:?Tenha um corpo belo e saudável.? ?Seja rico e famoso.? ?Tenha uma vida sexual intensa e prazerosa.? E, finalmente, mas não por último: ?Seja feliz.? O mais interessante aqui é que nós podemos notar que as manifestações sintomáticas mais comuns na contemporaneidade e que apresentam um desafio, não somente à clínica psicanalítica, mas à clínica médica, se apresentam como uma resposta a estes imperativos, mas uma resposta em negativo. Então, nós temos, em resposta à injunção de ter um corpo belo e saudável, a anorexia, a bulimia, e também poderíamos incluir aí talvez a toxicomania. Quanto a ser rico e famoso, o que se apresenta é a exclusão social e a delinqüência, sobretudo na forma como aparece, em sua expressão recente, a delinqüência entre os jovens de classe média e média alta. A respeito da injunção a ter uma vida sexual intensa e prazerosa, aumentam os casos do que os médicos chamam, eufemisticamente, não de impotência, mas disfunção erétil. E, recentemente, há uma tentativa de definir clinicamente um equivalente feminino para que se possa encontrar mesmo medicamento para a mulher. E, finalmente, atendendo ao imperativo de felicidade, temos o mal da moda, a depressão

Notem que tais enunciados, que outrora seriam assumidos meramente como votos, anseios, apresentam-se em um caráter imperativo, sob a forma de injunções desse social anônimo às quais o sujeito se esforça para obedecer, o que lhes confere uma dimensão nova, propriamente superegóica. Observem também que nas manifestações sintomáticas que daí decorrem poderíamos perceber tanto uma submissão do sujeito a estas injunções, quanto uma maneira pela qual ele reagiria a este gozo ilimitado que lhe é imposto. Os novos sintomas da contemporaneidade podem ser lidos como um modo de reação do sujeito contra a reificação que lhe é imposta pelo laço social, onde o sintoma surge como uma derradeira manifestação contra o seu apagamento.

Referências bibliográficas

FREUD, S. O ego e o id. In Ed. Standard Brasileira, vol. .R.J.: Imago, 197

________. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. In E.S.B. vol. R.J.:Imago, 197

Krutzen, H. Index

LACAN, J. O Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud. R.J.: J.Z.E., 1979.

________. O Seminário, livro 3, As psicoses. R.J.: J.Z.E., 1988 (2a ed.revista).

________. O Seminário, livro 10, A Angústia. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 1997 (edição sem fins comerciais).

________. O Seminário, livro 18, De um discurso que não seria do semblante. Recife: C.E.F., 1995 (edição sem fins comerciais).

________. O Seminário, livro 20, Mais…ainda. R.J.:J.Z.E.,1982.

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Las Meninas? E o sintoma

Clarice Gatto

?Uma filha é para seu pai um tesouro a vigiar, e o cuidado dela tira-lhe o sono para que não suceda que passe a flor da sua idade sem se casar, e, quando enfim estiver com seu marido, lhe não seja odiosa.?

Eclesiástico, 42, 9.

?Las Meninas? ?Vênus e seu espelho?

Las MeninasVênus

(Este trabalho teve início em 1996, por ocasião do IX Encontro Internacional do Campo Freudiano em Buenos Aires… Lembro-me do embaraço que me causou o título do livro organizado por Fernando Marías, Otras meninas[1] que encontrei na Livraria do Museu de Belas Artes. Porque em português nós dizemos outras (com u), e otras pertence ao modo de falar das crianças.

Eis aí, por onde tudo começou: por um equívoco ?amoroso?… lá onde a relação genital proibida se mistura à excitação libidinal, atualizando o que regressa. Despertando o passado e o presente ao mesmo tempo, vindo significar no futuro o ciúme que invadiu meu corpo… Ou, no dizer que se segue, a partir dessa articulação do simbólico com o real, através do equívoco significante com a letra, algo se inscreve, causa desejo e o trabalho da Durcharbeiten se faz.)

*

A arte ilusionista e barroca do grande colorista Diego Rodríguez de Silva Velázquez (1599-1660)[2] no século XVII – dita impressionista por Manet duzentos anos depois – encerra a repetição que antecipa um estilo. Comparando Las meninas com Vênus e seu espelho[3] encontramos em Velázquez uma leitura moderníssima do espelho. Ao apresentar a diluição da imagem especular, seu espelho desvia nosso olhar para uma imagem real…

N? O objeto da psicanálise[4], Lacan havia feito uma leitura surpreendente a partir deste quadro e do ensaio de Michel Foucault em As palavras e as coisas[5], conforme observou Antonio Quinet em seu artigo O espelho e o quadro[6]. O ?meu problema?, dizia Lacan, era estabelecer uma distinção definitiva entre a função da perspectiva (que organiza o espaço) e a da moldura (que cerne o espaço em um de dentro e um de fora) – ambas a partir do quadro e do espelho – para pensar uma ?teoria do desejo? quando da entrada do próprio sujeito no duplo campo do escópico e do invocante[7], e a implicação do analista nesta empreitada.

Além das interrogações sobre a importância em demarcar essas diferenças cruciais, Lacan também se perguntava sobre o ?fim? da análise e ?como se transfere essa dialética do objeto a, se é a este objeto a que é dado o fim e o encontro onde o sujeito deve se reconhecer. Quem deveria fornecer? Ele ou nós??[8]

Aí, parece-me que Lacan se serve de Velázquez para tomar ?Las Meninas? como paradigma de uma interrogação sobre a posição do analista: ora como espelho porque ?mostra o que não se pode ver? estabelecendo uma zona real de visibilidade, ora como quadro quando apresenta duplamente ?o que falta à imagem?: seja criando uma zona imaginária de invisibilidade entre o quadro e o público (o plano-sujeito[9] e sua relação com a fantasia fundamental[10]), seja no que deixa ver uma outra zona, simbolicamente marcada pelas diversas fendas que possui um quadro, como dizia Lacan, e por ele denominadas de ponto ao infinito (o nó do sujeito na articulação entre demanda e desejo, conforme já o havia trabalhado no seminário sobre A Identificação[11]).

No primeiro ponto tomarei o esquema freudiano da pulsão escópica para demarcar o efeito epifânico[12] que produz essa cena original criada por Velázquez. No segundo ponto, a cor e a luminosidade servirão para apresentar uma outra cena do quadro, aproximando-a da interpretação (memorável) de Velázquez da mulher enquanto sintoma e o cerne do trabalho analítico – suporte de uma construção fantasística.

Ein anderer Schauplatz[13]

No seminário O ato psicanalítico Lacan escreve: ?Quando o analista se interroga sobre um caso, quando faz sua anamnese, quando o prepara, quando começa a dele se aproximar e, uma vez que ele entre com a análise, que ele procure no caso, na história do sujeito, da mesma maneira que Velázquez está no quadro das Meninas, ele estava já, o analista, em tal momento e em tal ponto da história do sujeito. A vantagem disso é que ele saberia o que é a transferência. O centro, o pivô da transferência, isso não passa absolutamente por sua pessoa. Há algo que já está lá. Isso lhe daria uma maneira completamente diferente de abordar a diversidade dos casos. Talvez, a partir desse momento, ele chegasse a encontrar uma nova classificação clínica que não a da psiquiatria clássica, que ele jamais pôde tocar nem abalar até agora, e por uma boa razão: porque jamais pôde fazer outra coisa além de segui-la.?[14]

Dizer que o analista está na história do sujeito ?da mesma maneira que Velázquez está no quadro das Meninas? nos permite assinalar para duas maneiras diferentes de se estar na história do sujeito: ora como sujeito suposto pintor aquele que supostamente assina a cena do quadro, ora como o pintor no ato de pintar…

Lacan se utiliza das leis da perspectiva – tomada da Geometria – para usá-las como suporte da montagem pulsional, e assim aproximar a presença de Velázquez no quadro com a do psicanalista na história do sujeito.

A pulsão – der ?Trieb? – funciona para Freud ?como uma noção de fronteira entre psíquico e somático, como representante psíquico oriundo das excitações que chegam à psique pelo interior do corpo, e como uma ?exigência de trabalho? (Arbeitsanforderung) que é infligida ao psíquico em conseqüência de sua conexão com o corpóreo.?[15] Quando Freud escreve os destinos da pulsão – a inversão[16] no contrário, a volta contra a própria pessoa, o recalque e a sublimação – ele utiliza as duas primeiras para construir (ao invés de analisar) um arcabouço teórico capaz de demarcar para o próprio corpo as conseqüências psíquicas da economia libidinal – ?essa energia imensurável das pulsões?[17],[18].

?A realidade perceptiva e a realidade perspectiva se opõem, assim como a visão e o olhar?[19]. As leis da visão são aquelas do espelho, as do olhar se suportam pela construção perspectiva do quadro, tal qual uma tela entre o sujeito e o mundo como nos faz ver Magritte ao pintar uma janela no quadro e através da qual nosso ?olhar mergulha no espaço? criando-o.

O espelho de Velázquez – tanto em Vênus e seu espelho (1644-1648) quanto em Las meninas (1656-1657) – dilui a imagem especular desenhando um espectro de imagens ?reais? que funcionam como traço significante. É assim que Lacan vai dizer que ?o rei e a rainha representados no espelho são uma presença simbólica e do simbólico, um representante do espelho e não uma representação de um espelho ou de um modelo.?[20] Na verdade, o esvaziamento da imagem produzido pela apresentação dos semblantes embaçados em ambos os quadros, abre a possibilidade de uma série de interrogações: embaçado pelo tempo? Pela distância? Por que pintou um suposto casal real? Que quer dizer? Conjugando nossa visão ao olhar insatisfeito pela falta de nitidez ele nos leva a encontrar uma outra imagem – ein anderer Schauplatz – capaz de ser via de miragem para a nossa ficção! A ousadia de Velázquez está em abandonar a estética do século XVII, cuja alusão corrente entre o reflexo do espelho, o brilho solar e o lugar soberano ocupado pelo rei estabelecia a personificação das qualidades a serem respeitadas. Pois ?o corpo do rei não era uma metáfora, mas sim uma realidade política: sua presença física era necessária ao funcionamento da monarquia? como observa Foucault[21]. Em seu espelho, porém, Velázquez oferece para nós o segredo do desejo…, como veremos.

Neste ponto, Velázquez entra na história do sujeito como um significante qualquer[22]. Pois essa presença do simbólico marcada pela inconsistência da imagem especular pela via do equívoco significante com a imagem (e a imagem aí, freudianamente, funciona como significante) é pura epifania. Daí encontrarmos diversas cenas deste quadro ?assinadas? por tantos autores quantas forem as exigências pulsionais de trabalho. Por exemplo, Picasso[23] em 1957 e suas 49 versões de Las meninas, Lacan em diversos momentos de seu ensino e Foucault, no polêmico ensaio Las meninas, em 1966, abrindo uma reflexão extremamente instigante sobre a arqueologia das ciências humanas.

O quadro, nos diz Lacan, funciona como o representante da representação, pois ?latente à imagem especular há a função do olhar?. O olhar, sendo diverso da visão e se suportando da construção perspectiva, dá ?asas ao desejo? na contingência de significação (Bedeutung). Nesta perspectiva, o quadro tem a mais estreita relação com a fantasia ($ à a). Como o quadro, a fantasia[24] é uma tela que esconde e indica o real. Era o que nos apontava Freud na carta a Fliess de 2 de maio de 1897: ?as fantasias servem, simultaneamente, à tendência a aperfeiçoar as lembranças e à tendência a sublimá-las. São fabricadas por meio de coisas ouvidas e das usadas posteriormente, assim combinando coisas experimentadas e ouvidas, acontecimentos passados (a história dos pais e antepassados) e coisas que foram vistas pela própria pessoa.?[25]

No seminário A lógica da fantasia (1967), Lacan ?distingue um um imperfeito, que ele escreve ?1?, de um ?um? perfeito, que ele escreve ?I?. E de sua diferença – entre uma relação fracassada e uma relação que, por ser miticamente consumada, aparece como a razão matemática deste fracasso – ele deduz a escritura I >1, cuja conseqüência lógica seria que a este 1 imperfeito falta alguma coisa (1 – a, escreve), o objeto do fantasma? (fantasia) [26]. Neste mesmo seminário, Lacan[27] destaca que esta lógica que a fantasia tem, imprime uma significação de verdade, a qual ocupa o lugar de um axioma, isto é, de uma proposição significante, articulada, colocada como verdadeira de saída e sobre a qual tomam apoio as outras proposições. Será nesta lógica que algo da sexualidade será subjetivado e a pergunta sobre sua origem traumática poderá encontrar ?um? destino…

Las meninas e o sintoma ou o desejo de Velázquez?

O que pinta, então, Velázquez…?

Digamos que ele pinta uma alegoria dos dois objetos sexuais (Sexualobjekte) originários do ser-falante – sich selbst (si mesmo) e das pflegende Weib (a mulher que cuida) – tal qual assinalava Freud em Para a introdução do narcisismo, caracterizando o narcisismo primário como a expressão dominante na ?escolha de objeto? (Objektwahl) sexual.? [28] Essa alegoria, propiciada no quadro pela dimensão do olhar e da tela em seu interior, situa Velázquez na história do sujeito.

Vemos então si presentificar uma seqüência de olhares ao infinito que não se encadeiam entre si mas remetem sem cessar ao tempo anterior de uma história (pulsional), e de ?onde a partir de uma certa data, historicamente situável, o sujeito, nomeadamente o pintor, se fez presente no quadro…?[29], como revela Lacan ($ à D). Já na tela vemos desdobrar diante de nós a função da moldura que cerne o espaço em um de dentro e um de fora, e o Witz[30] do pintor a nos pregar uma peça, quando em seu gesto acena para a ausência de significante que represente a mulher, seu gozo, e de onde emerge o significante de A barrado[31], S(A). Assinalando com sua arte o que ?cessa de se escrever?[32], Velázquez abre a possibilidade de acesso a um além, que Lacan desde A ética da psicanálise chamava o real.

O que resta, em realidade, é esse ?quadro vivo?, essa ?cena estranha?, que ocupou tantos críticos de arte, como lembrou Lacan e certamente como ele disse, por ?inscrever, ao mesmo tempo, o lugar de objeto (a) e a relação com a divisão do sujeito.?[33] Desse jeito, Velázquez nos lembra um dizer de Freud: ?é de todo modo duvidoso que se torne possível, sobre a base da elaboração do material psicológico, se obter a separação e a classificação das pulsões?[34]. Pois aí haverá ?uma mistura muito ampla e variável nas suas proporções…?[35] Haverá verdadeiramente cisão do ser-falante, o campo do analisável se perde cedendo lugar ao campo ficcional, às construções subjetivas propriamente ditas ($ à a).

?A pulsão escópica (Schautrieb), nos diz Freud, é mesmo auto-erótica no começo de sua atividade; ela tem porém um objeto, mas ela o encontra no próprio corpo. Somente mais tarde ela será conduzida (pela via da comparação) a trocar o objeto com um análogo do corpo alheio (fremd).?[36] O olhar, diz Freud, precede o ser olhado[37].

Assim, ao compararmos Vênus e seu espelho com Las meninas, encontramos em Velázquez um pintor que pinta como um poeta, que evoca o ?movimento? ora como um contemporâneo da ciência moderna, ora como o mais feliz de todos os ritmistas… No primeiro quadro é a beleza que está em jogo, o belo corpo dá forma à mulher que se espalha no primeiro plano da tela; no segundo, porém, a ação que o move é a do sublime, a sublime ação (sublimação[38]) de pintar os signos inapreensíveis do que causa o desejo, cuja ?ausência de forma?[39] (Kant) tende a provocar ?o esvaziamento da dialética?, imprimindo à imaginação uma mudança de parceiro (e por que não de sintoma?), pois na ação do sublime os signos se deslocam do entendimento à razão… É o poeta – como disse certa vez Lacan – que se endereça a essa razão. É nisso que a Psicanálise se aproxima da arte![40], onde a instância da letra é a razão do inconsciente desde Freud[41], como interpretou Lacan.

As quatro ?meninas? ? as duas pajens, a infanta Margarita e a anã ? no segundo plano do quadro podem muito bem significar momentos na construção de uma fantasia… Através da luminosidade e do jogo de cores memoravelmente distribuídas nessa cena magnífica, eis aí o desejo de Velázquez e por onde o olhar tornando-se objeto invocante nos faz ver as inquietações provocadas pela interrupção dos movimentos retratados na tela.

Rio de Janeiro, abril de 2001.

Resumo: Esse artigo retoma o problema posto por Lacan no seminário O objeto da psicanálise entre a função da perspectiva (que organiza o espaço para o sujeito) e a da moldura (que cerne o espaço em um de dentro e um de fora) ? ambas a partir do quadro e do espelho em Velázquez – para pensar uma ?teoria do desejo? quando da entrada do próprio sujeito no duplo campo do escópico e do invocante e a implicação do analista nessa empreitada.

Abstract: That article retakes the problem put by Lacan in the seminar The object of the psychoanalysis between the function of the perspective (that organizes the space for the subject) and the one of the frame (that sifts the space from within in and one of out) ? both starting from the picture and of the mirror in Velázquez – to think a “theory of the desire” when of the own subject’s entrance in the double field of the escopic and of the invonker and the analyst’s implication in that taskwork.

Las Meninas? E o sintoma Read More »

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