Sem categoria

Considerações a respeito de um princípio ético da psicanálise. Em torno de um caso clínico.

Sidnei Goldberg

Sidnei Artur Goldberg1

Your Mother Should Know
(Lennon-McCartney)

Uma questão recorrente em nosso campo diz respeito ao tema da Ética. A pergunta é: haveria uma ética própria da psicanálise ou deveríamos pensar numa ética geral, frente à qual, qualquer pessoa, analista ou não, pudesse se posicionar? Em artigo que escrevi para o Segundo Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise, abordei uma questão que delineia o que poderia ser considerado como um princípio ético da psicanálise. Se entendermos por princípios éticos as diretrizes que regem as ações dos psicanalistas, podemos, sim, falar em ética da psicanálise. Nesse caso, quais seriam os fundamentos que balizariam esta ética, que não fossem simples standards técnicos? O tema da ética da psicanálise está presente desde Freud. Em seus Artigos sobre Técnica2, ele apontou a transferência como ponto de resistência e, simultaneamente, motor da cura, mostrando que grande parte do sofrimento dos sujeitos estava relacionada ao fato de eles estabelecerem um laço com determinadas pessoas que iam encontrando na vida, colocando-as num lugar a que chamou de ?clichê estereotípico? ou, segundo a terminologia de Jung, ?imago?. Lacan estende essa idéia e mostra que a estes ?outros?, colocados em posição privilegiada de grande Outro, o sujeito se oferece em posição sacrificial de gozo. Por sua vez, Nasio aponta uma tendência do sujeito humano a antropomorfizar o grande Outro, que, no entanto, é apenas a cadeia de significantes na qual todos estão alienados.

Apesar de, nos Artigos sobre Técnica, propor uma série de preceitos técnicos ? tempo das entrevistas, dinheiro, divã, etc. ? Freud ressalta que esses preceitos referem-se ao modo por ele encontrado para conduzir os processos analíticos. As pessoas poderiam utilizar outros preceitos técnicos, sem, porém, abandonar alguns pontos essenciais, tais como a associação livre e a dissolução da transferência num momento mais avançado do processo analítico. Em ? Recordar, Repetir e Elaborar3 ? afirma que aquilo que não puder ser recordado na fala, será repetido na transferência, ressaltando a idéia da transferência como motor da cura. A posição que o sujeito toma frente ao Outro no processo de análise ? também conhecida como neurose de transferência ? será instrumentalizada de forma que o analista possa dirigir o sujeito a um ponto em que ele tenha a possibilidade de não mais repetir o laço marcado pelas características infantis. Esse laço poderá ser eventualmente encenado em jogos sexuais, mas não será reproduzido sob a forma compulsiva de um retorno do recalcado. Tendo em vista essas questões, pretendo abordar um dos princípios condutores da ética psicanalítica, o da dissolução da transferência, que visa possibilitar ao sujeito deixar de colocar-se numa posição de gozo em relação aos seus semelhantes postos, estes, no lugar do grande Outro. A cura psicanalítica destaca portanto a dissolução da transferência como um dos pontos éticos centrais da psicanálise. Em outros termos, trata-se de evitar que qualquer semelhante possa ocupar o lugar do Outro, ou seja, que qualquer semelhante venha a ser tomado como Outro. Ou, ainda, evitar que ocorra a absolutização do pequeno outro (os semelhantes) na posição do grande Outro. Para reportar esse processo, passemos então ao relato de um fragmento clínico.

Dois tipos de circuitos de gozo Freya costuma dizer que ?nunca consegue descobrir nada?. Afirma que outras pessoas fazem análise e conseguem entender coisas, ?eu não consigo, acho que sou muito burra para isto.? As pessoas a quem se refere são mulheres: amigas, pessoas para quem trabalha ou da família. Todas fazem ou já fizeram alguma terapia ou algo que o valha e principalmente são providas das qualidades que lhe faltam, tais como: marido, namorado, filhos, carreira, dinheiro e por aí vai. Existem dois tipos de circuito compulsivo em que Freya entra de forma alternada. No início de sua análise aparecia preponderantemente o primeiro, que consiste nas seguintes etapas: algo escutado aleatoriamente sobre os sintomas de alguma doença faz com que ela comece a pensar que pode estar sofrendo do mesmo mal ou de algum correlato. Lembremos o que Freud nos diz da contaminação histérica em enfermarias: é claro que não se trata de pura imitação, é preciso que haja uma identificação com as causas. O segundo momento é o que ela define como ?eu preciso descobrir o que é, eu quero ter certeza do que é que eu tenho, e é prá já.? Neste ponto ela começa a perguntar para as pessoas amigas o que acham que pode ser e o que é que ela deve fazer. Simultaneamente marca hora em algum médico. Na consulta procura conduzir o médico a lhe dizer o que é que ela pode ter na pior das hipóteses. Sai sempre com requisição de vários exames. Quando isto não acontece, acaba procurando outro médico até que algum a mande para os exames. A terceira etapa consistia no desespero em saber o resultado dos exames. Comenta às vezes que é uma sorte ter um seguro-saúde e não precisar pagar pelos exames clínicos. Este é um ponto de engodo, pois o pagamento é muito mais caro, pois o faz com o próprio corpo. Começa então a telefonar, insistentemente, para o médico e para o laboratório, na tentativa de ter acesso imediato aos resultados. O processo chega a tornar-se cômico a ela mesma, pois é reconhecida pela voz, sendo identificada pelo nome pelos atendentes da central telefônica que atende a rede de laboratórios. O tempo de espera é angustiante. Quando, finalmente, recebe a resposta de que não tem nada, sente-se extenuada. Pergunta-se, então, por que sempre entra nessas histórias. Passa um tempo e surge outra questão corporal que a faz perguntar novamente aos médicos: ?O que é que eu tenho??. Freya chega à sessão extra que pedira e diz: ?eu nem sei se vai adiantar ter vindo aqui, mas é que eu cismei agora com uma nova ? diz rindo ? eu tô louquinha. Enfiei uma coisa na cabeça, mas resolvi passar aqui primeiro para ver se você me ajuda. Eu cismei que eu tô com câncer no pulmão. E se eu estiver com alguma coisa e ninguém sabe? Com meu pai, demoraram para descobrir…? Eu lhe pergunto por que câncer e por que no pulmão. Ela diz que não sabe. A única coisa que lhe ocorre é que seu pai morreu de câncer no pulmão seis meses antes. Mas por que só agora lhe ocorre o pensamento sobre o próprio câncer? Ela não tinha a menor idéia. ?Na verdade eu estava indo marcar uma consulta com um médico porque eu quero fazer uma chapa no pulmão, mas tenho medo que me mande fazer outros exames, como ressonância (medo pela possível demora em obter o resultado como também em razão da aflição por ter que ficar dentro do aparelho de ressonância), aí eu resolvi passar aqui para ver se eu conseguia tirar esta idéia da cabeça, mas eu posso ter mesmo, não é, o que você acha? Queria ver se você me explica porque que eu tenho que começar com estas histórias?. (essas histórias são o que chamei de circuito compulsivo) ?Mas eu sei que você não pode me dizer, eu é que tenho que descobrir, só que eu não consigo. Acho que eu sou muito burra, eu nunca consigo entender nada.?

Este me pareceu um momento interessante em sua análise porque pela primeira vez me procurou antes de iniciar o circuito. Poderia dizer, fazer uma imagem, de que ela se encontrava à ?beira do precipício?, ou seja, no momento que antecede ao que ela chama de ?chapa?. Nas outras vezes, sempre chegava quando já estava em meio a consultas e exames. Não era raro desmarcar sessões por conta dessas ocupações. Perguntei, na falta de outras perguntas, em que momento lhe ocorrera a idéia de câncer no pulmão pela primeira vez. Ela disse que não sabia, que não se lembrava mas de que tinha sido há poucos dias, talvez na sexta ou no sábado. Estávamos em uma segunda-feira. Insisti, disse que talvez fosse importante lembrar no que pensava quando a idéia surgiu. Freya disse então que, na sexta à noite, tinha ido dormir e acordou para tomar água. Quando passou pela sala, sua irmã assistia a um filme do tipo ?Plantão Médico?. Viu uma cena em que dois médicos punham uma chapa de pulmão diante da luz e diziam espantados que ?aquele paciente parecia não ter nada, quem diria…? Qual a doença? Ela não sabe, só viu esse trecho, mas compreendeu que o paciente estava mal e que até então os médicos não sabiam. Percebe então que o paciente do filme está no lugar que ela imagina para si, mas diz que não foi exatamente neste momento que lhe apareceu a idéia do câncer em seu pulmão.

Na quarta-feira anterior, ela havia visto na televisão uma notícia sobre a morte do deputado Eduardo Mascarenhas, só que não informaram a causa da morte. No sábado, leu uma pequena nota em um jornal dizendo que ele morrera de câncer no pulmão. ?Sim, talvez tenha sido neste momento que tenha me vindo a idéia?. Este novo dado pareceu-me insignificante em relação à cena do filme, mas é mesmo desta forma que se processa o mecanismo do deslocamento: o que é importante nos aparece como banal e vice-versa.

Depois de um momento de silêncio, Freya ri e diz: ?você não está lembrando nada em relação a este nome, não é ??. ?O que ??, pergunto. Ela relembra então o tempo em que seu pai estava no hospital, e passou um dia tendo delírios (seu câncer no pulmão foi descoberto a partir de sintomas neurológicos, pois já se evidenciava uma metástase no cérebro). Ele havia sido medicado por um neurologista que atribuiu os delírios ao tumor no cérebro. Freya havia me telefonado dizendo que a auxiliar de enfermagem, ao chegar no quarto, chamara seu pai de ?seu? Eduardo Mascarenhas.

Ela explicou que este não era seu nome, mas a auxiliar informou-lhe que seu pai havia dito que seu nome era mesmo Eduardo Mascarenhas e que era assim que queria ser chamado, pois acreditava estar sendo vítima de um complô. Freya achou que a nova medicação prescrita pelo neurologista poderia estar causando os delírios. Pensou em consultar um psiquiatra, queria saber o que eu achava. Concordei com a idéia e disse que iria dar um ?chute?, pois eu nem conhecia seu pai ? parecia-me interessante que ele houvesse ?escolhido? para si o nome de um deputado (o complô era político) que também exercia a psicanálise e a psiquiatria. De fato, o psiquiatra chamado alterou a medicação e ele não teve mais delírios até a sua morte, alguns meses depois.

O que me parece importante, nessa lembrança, é que Freya aparece numa posição diferente daquela em que sempre se coloca: ?eu sou burra, não sei nada?. Nas duas situações, de forma inusitada, o que ela articula ganha valor. Num primeiro tempo, em relação ao saber médico (o neurologista era um medalhão) e num segundo, em relação ao não-saber do analista, que, naquele momento da transferência, não percebeu qual o alcance do representante da representação, Eduardo Mascarenhas. Concomitante ao não-saber do analista (seu esquecimento), um momento de báscula se abre onde ela pode tramar uma rede de deslocamentos entre as cenas e o seu sintoma.

Nesse momento, a sessão foi interrompida apesar de seus protestos, já que queria que eu lhe explicasse exatamente o desenrolar das coisa

1 Sidnei Artur Goldberg: psicanalista, editor da revista de psicanálise “Textura”, diretor da coleção Discurso Psicanalítico da editora Agalma, co-autor de “Sobre o Desejo Masculino”, ed. Ágalma, “Temas da Clínica Psicanalítica”, ed. Experimento, “Sexualidade Feminina/Masculina” ed. Experimento.
2 FREUD, S. ?Artigos sobre Técnica?.In: Obras completas, vol XII, E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
3 FREUD, S. ?Recordar, Repetir e Elaborar?.In: Obras completas, vol XII, E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, 1976

Considerações a respeito de um princípio ético da psicanálise. Em torno de um caso clínico. Read More »

O Supereu e o Imperativo de Gozo

Marcus do Rio Teixeira

Quando recebemos o convite, feito por Angélia Teixeira ? a quem agradecemos a oportunidade de estar aqui ? para falar sobre este tema, nos colocamos inicialmente uma questão. Esta questão, que nos pareceu um tanto ingênua, diz respeito à naturalidade com que nos referimos à definição lacaniana do supereu. De fato, esta definição já faz parte das nossas referências teóricas há tanto tempo que costumamos esquecer ? ou, no caso das novas gerações de analistas, saltar ? a definição freudiana, evitando cotejá-la com a leitura de Lacan. A nossa questão poderia ser resumida desta forma: Lacan está sendo coerente com Freud quando fala do supereu?

A abordagem do supereu em Lacan nos chama a atenção, logo de início, pelo caráter provocador da sua definição aforismática, que inclui o conceito de gozo, considerando-o uma injunção feita pelo supereu ao sujeito. À primeira vista esta definição parece entrar em total contradição com a definição freudiana. Primeiramente porque, se abordarmos o conceito freudiano de supereu superpondo-o ao conceito de gozo, constatamos, de imediato, que para Freud o supereu só poderia ser definido como instância que interdita, que proíbe, que tolhe o gozo ? aí entendido, no caso, como gozo sexual, porque é preciso frisar que para Freud o gozo de que se trata é, sem dúvida alguma, o gozo sexual. O supereu freudiano é, portanto, a instância que vai interditar o acesso do sujeito ao gozo sexual, e Freud lista todas as conseqüências sintomáticas decorrentes, tanto da tentativa de cumprir esta proibição (auto-exigência neurótica), quanto das tentativas de burlá-la (sentimento de culpa).

Passamos muito rapidamente por esta parte, uma vez que todos vocês possuem bastante familiaridade com o tema. O supereu aparece na obra de Freud, sobretudo em O Eu e o Isso, como uma instância relacionada com a consciência moral, com a proibição, com o sentimento de culpa. Freud se refere a ele como herdeiro do complexo de Édipo, ou seja, como uma introjeção da autoridade das figuras parentais, notadamente da figura do pai ? do pai real, como diria Lacan ? resultante dos desdobramentos da fase final do complexo de Édipo. Ao que parece, ainda estamos aqui em uma concepção espacial do dentro e do fora (diversa da topologia moebiana de Lacan), na qual algo que vem do exterior, ou seja, essas proibições provenientes do casal parental, é incorporado pelo sujeito. Há também toda uma discussão entre os analistas da época e mais tarde entre os pós-freudianos sobre a origem do supereu. Fala-se de um supereu que seria herdado diretamente do supereu paterno e se discute a existência de um supereu arcaico ou a proeminência da cultura sobre algo de inato. Para Freud haveria ainda um problema específico no que diz respeito ao supereu feminino: uma vez que para as meninas faltaria um bom motivo para abandonar o Édipo, elas permaneceriam nele por um tempo ?indeterminado? e a sua dissolução seria incompleta. Como conseqüência, diz ele, a formação do supereu nas mulheres seria prejudicada e essa instância não conseguiria adquirir a intensidade que dela seria esperada. Esta observação controversa de Freud não é, no nosso ponto de vista, tão discutida quanto mereceria entre nós. De todo modo, é curioso que os analistas prefiram citar mais uma frase atribuída a Freud, que diz do seu não-saber sobre a posição feminina, do que outras, como esta, que revelam um saber provocador.

Um outro ponto que se destaca na concepção freudiana do supereu é a sua extrema crueldade ? esta é a maneira como Freud a ele se refere ? sua exigência desmedida, sua falta de conexão com a realidade. À medida que o eu se esforça no sentido de alcançar uma nobreza moral, um estado análogo à santidade, que ele busca atender essas exigências que são justamente impossíveis de serem cumpridas, o supereu se torna ainda mais exigente. Para Freud, portanto, o supereu é uma instância cruel e que não tem noção da realidade. Suas exigências desmedidas não são, na realidade, simples exigências morais que o sujeito poderia cumprir desde que aceitasse abrir mão de seu gozo. Ao contrário, essas exigências tornam-se maiores e mais absurdas à medida que ele busca atendê-las.

Ao consultarmos, para esta apresentação, o Index de Henry Krutzen ? que foi de grande utilidade ? chamou nossa atenção a extrema escassez das referências de Lacan a este conceito na sua obra. Se compararmos com outros termos, como por exemplo, o Ego, o Moi, veremos que eles possuem uma quantidade muito maior de citações na obra de Lacan, ao longo do seu Seminário ? sendo citados várias vezes ao longo das aulas de um mesmo Seminário ? e dos Escritos. O supereu, por sua vez, aparece predominantemente nos primeiros Seminários, sobretudo no Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud; e nos Seminários imediatamente posteriores até o 7 ou 8. Em seguida as referências se tornam cada vez menores e mais espaçadas. Às vezes, elas consistem em uma única frase em todo um ano de ensino. Finalmente, há essa famosa referência que aparece no Seminário 20, Encore, que na verdade é precedida de uma formulação mais completa no Seminário 18, De um discurso que não seria do semblant. Em seguida, uma única citação no Seminário L?insu, e isso é tudo que existe nos Seminários de Lacan sobre o supereu. Nos Escritos, o conceito comparece mais longamente em seu artigo sobre Psicanálise e Criminologia, e em seguida ele se resume praticamente a uma frase, uma frase de efeito que Lacan repete insistentemente, citando a si mesmo ? sua definição do supereu como ?esta figura obscena e feroz?. Lacan não se estende muito além desta definição.

Não pretendemos fazer aqui uma leitura exaustiva da concepção lacaniana do supereu ao longo dos Seminários, mas diríamos, brevemente, que no Seminário 1, quando do seu retorno a Freud, trata-se para Lacan de um trabalho de precisão, de depuração dos conceitos freudianos. A leitura lacaniana do supereu situa-se nessa linha de trabalho: trata-se de tomar o conceito freudiano e lapidá-lo, aparar suas arestas, depurando-o do ranço da ego-psychology, até chegar a uma definição essencial. O que é interessante nesse início do seu ensino, nos anos 53/54, é ele que praticamente antecipa a sua definição posterior do imperativo. Ele já afirma então que o supereu se define como sendo um imperativo; mais ainda, ele o reduz ao enunciado, a uma manifestação do Simbólico, uma espécie de ponta do Simbólico que se destacaria e que restaria como enunciado puro. Ou seja, ele remete o supereu ao campo da linguagem, ao enunciado e ao significante. No Seminário 3, As psicoses, Lacan vai novamente aproximar o supereu do significante. Retornaremos a este ponto mais adiante. Além disso, ele vai destacar na definição freudiana o aspecto de ?lei insensata? ?é assim que ele denomina o supereu ? uma lei que não tem noção de realidade, uma lei sem sentido e, como ele diz, uma lei que, no limite, é a própria negação ou o próprio desconhecimento da lei. Trata-se de uma lei tão exagerada que, no limite, ela é a sua própria negação. Observem, porém, que nesse período Lacan ainda permanece próximo à definição do conceito de supereu no sentido estritamente freudiano. O supereu nesse momento ainda é um conceito que ele retoma de Freud e que ele procura depurar, mas que ele interpreta de modo fiel a sua acepção freudiana. Por exemplo, ele justifica a sua definição do supereu como figura obscena e feroz remetendo esta ferocidade à crueldade freudiana, tal como Freud define o supereu ? trata-se da crueldade em relação ao eu.

Nos anos seguintes, encontramos referências ao supereu aproximando-o da Voz, no Seminário 10, A Angústia, e outras definições esparsas que vão se estender ao longo desses primeiros Seminários. Cabe destacar, por exemplo, a distinção da instância do Ideal do eu. Finalmente, no Seminário 18, De um discurso que não seria do semblant ? preferimos manter este termo no original por tratar-se de uma tradução muito problemática ? Lacan vai retomar de forma um tanto repentina este conceito, em passagens curtas, porém extremamente marcantes, nas quais destaca a sua importância na teoria freudiana e aponta a sua relação com o gozo. No decorrer do Seminário ele comenta, de passagem, que ?o supereu é a única coisa da qual jamais tratei?. Ele vai anunciar então, no final da última aula deste Seminário: ?eu trago aqui alguma coisa para vocês guardarem na mão…? Em seguida, anuncia de maneira bombástica que ?na verdade, a grande novidade da segunda tópica de Freud é o supereu?. Ele vinha de falar, justamente, do pai da horda primitiva, e nessa passagem aproxima o supereu deste pai que é, justamente, o ao-menos-um que escapa à castração: ?E o que é que esse Pai com efeito diz, no declínio do Édipo? Ele diz o que diz o supereu. O que diz o supereu ? não é por nada que eu nunca o abordei verdadeiramente ? o que diz o supereu é ?Goza!??
Segundo pudemos verificar, esta é a primeira formulação do supereu como imperativo de gozo, apesar de ser menos citada entre nós que a formulação posterior do Seminário Encore. Lacan vai finalizar com uma citação da Bíblia, extraída do Eclesiastes: ?Goza tanto quanto tu és, goza. Goza com a mulher que tu amas.? E ele conclui de modo irônico, dizendo: ?É mesmo o cúmulo do paradoxo porque é justamente do amor que vem o obstáculo?. Trata-se aqui de uma referência à famosa clivagem freudiana do desejo masculino entre o objeto do amor e o objeto do desejo. Lacan passa o Seminário seguinte sem voltar a se referir ao supereu e, exatamente um ano depois, no seu Seminário 20, Encore, ele continua como se não houvesse feito uma interrupção, retornando exatamente ao ponto onde havia parado e falando do gozo, numa última referência ao supereu, na qual reafirma que ele é o imperativo do gozo ? é essa instância que diz: ?Goza!? Mais adiante, há uma única referência no Seminário 24 e mais nada.

A primeira impressão ao fazer esse percurso da abordagem do supereu na obra de Lacan é que ele parece inicialmente não saber muito bem o que fazer deste conceito freudiano, que é uma espécie de batata quente em suas mãos. Entretanto, esta formulação tardia do Seminário 18, parece nos indicar uma outra via, onde Lacan na verdade procura dar uma nova roupagem a este conceito, onde não se trata mais de uma depuração do conceito freudiano, mas de uma leitura propriamente sua, uma apropriação lacaniana do conceito do supereu. Nesse sentido, nos parece que ele adota uma abordagem que, apesar de estar delineada no conceito de Freud, avança em outra direção. Voltemos aqui à questão que levantamos no início: Freud e Lacan estão dizendo a mesma coisa quando falam do supereu? Eles estão falando do mesmo gozo? Para Freud, como vimos, trata-se sem dúvida do gozo sexual. E quanto a Lacan, seria o mesmo? A resposta a esta questão é essencial para respondermos esta questão, pois se ambos falam do gozo sexual, haveria uma contradição, uma vez que, segundo Freud, o supereu seria uma instância interditora desse gozo, enquanto para Lacan seria uma instância que proferiria um comando ao gozo. Por outro lado, se Lacan estiver se referindo a um gozo que não o sexual, um gozo, por exemplo, do fracasso, do sofrimento neurótico, do sintoma, poderíamos dizer então que se trata de uma leitura da concepção freudiana que não entraria em contradição com aquela, mas que buscaria repensá-la à luz de um novo aparelho conceitual.

Para esclarecermos este ponto, devemos lembrar de como o próprio Lacan define o gozo sexual. Para ele, trata-se de um gozo que diz respeito ao gozo fálico, um gozo que é limitado pelo significante, e que tem, necessariamente, que sofrer uma escansão, cujo modelo princeps é o orgasmo masculino. Ou seja, é preciso haver uma subida e um declínio da tensão, uma pausa necessária até mesmo biologicamente, para que o sujeito goze novamente. E quanto ao gozo imposto pelo supereu, será que poderíamos pensá-lo da mesma forma? Uma pista estaria na observação feita por Freud acerca das exigências feitas pelo supereu, as quais ele considera exageradas, desmedidas, incompatíveis com a realidade. Neste caso, o mandado de gozo do supereu seria impossível de ser cumprido. Este gozo seria, talvez, próximo não do gozo fálico, do gozo sexual, mas sim do que Lacan denominou gozo do grande Outro. Lacan parece dar uma pista nesta direção quando aproxima o supereu do pai da horda primitiva, daquele que é, justamente, o pai que escapa à castração.Trata-se do grande Outro, mas do grande Outro não castrado. Este imperativo de gozo imposto pelo supereu diria respeito, portanto, a um gozo do grande Outro, um gozo não-sexual, não-fálico, ilimitado, que não encontraria algo que pudesse detê-lo, uma barreira. A injunção ao gozo seria impossível de ser cumprida, justamente, porque, caso fosse cumprida, seguindo ao pé da letra o imperativo do supereu, o que o sujeito encontraria seria sua própria morte, o seu desaparecimento enquanto sujeito. Pois uma vez que o sujeito se arrisque a ir ao extremo do gozo do Outro, deste gozo que não possui limite, a única coisa que poderá detê-lo será, justamente, a morte. Estamos falando aqui de um gozo que consome o sujeito no sentido que uma vela é consumida pela chama, cujo modelo mais próximo na nossa clínica é, precisamente, o gozo do toxicômano, que vai até o extremo, até encontrar a overdose. Lacan retomaria portanto a formulação freudiana do supereu, resumindo-o ao puro imperativo que impede o acesso do sujeito ao gozo fálico, um comando a avançar até o extremo do gozo do Outro, que poria em risco o sujeito.

Quanto ao interesse decrescente de Lacan por este conceito, podemos entendê-lo como uma constatação de que o supereu não era necessário no seu aparato conceitual em uma fase posterior do seu ensino. Isto porque, na medida em que ele trabalha o conceito, reduzindo-o ao enunciado, aproximando-o do significante, a instância freudiana é de certa forma absorvida pelo significante-mestre, pelo S1, que Charles Melman vai chamar de manifestação concreta do imperativo categórico. O S1 assume na teoria lacaniana as funções de comando, de imperativo, que cabiam ao supereu, com a vantagem de não incorrer no risco de psicologização que a segunda tópica propicia, por remeter este comando a um puro significante. Restaria a articulação com a dimensão do gozo, que permite pensar a posição subjetiva na situação de sujeição ao Outro e aquilo que o sujeito vivencia nesta situação como gozo. Talvez isso explique a volta tardia de Lacan sobre esse conceito e a sua referência elogiosa no Seminário 18.

Para concluir, colocaríamos uma última questão: qual seria a pertinência do conceito de supereu na contemporaneidade? Faria sentido, seguindo Lacan, retomar ainda um conceito freudiano como este ou deveríamos abandoná-lo, na medida em que na obra final de Lacan ele de certo modo não lhe confere a mesma importância que outros conceitos?

Parece-nos que o supereu possui uma pertinência na clínica contemporânea, embora de uma forma naturalmente diferente daquela que lhe dava Freud. Esta diferença se daria no sentido de que ele se faz presente, hoje em dia, como um imperativo do gozo que provém, não mais das instâncias do casal parental, desses grandes Outros reais a que Freud se referia, tampouco desse grande Outro não barrado, do Deus do Antigo Testamento, mas de um outro tipo de lugar que seria, justamente, aquele que nós designaríamos, genericamente, como o social. Dessa forma, o imperativo superegóico, na contemporaneidade, chegaria a nós proveniente, não mais da família ou da tradição religiosa, mas do anonimato dos discursos a que somos submetidos pela cultura, pela mídia. É desde este lugar que nos chegam os imperativos do supereu, imperativos que conhecemos bastante e dos quais poderíamos citar alguns dentre os mais conhecidos, os mais freqüentes na nossa sociedade, que se apresentam sempre sob a forma de enunciados, como Lacan ressaltou. Quais seriam estes imperativos na sociedade contemporânea?

Poderíamos citar, dentre eles:?Tenha um corpo belo e saudável.? ?Seja rico e famoso.? ?Tenha uma vida sexual intensa e prazerosa.? E, finalmente, mas não por último: ?Seja feliz.? O mais interessante aqui é que nós podemos notar que as manifestações sintomáticas mais comuns na contemporaneidade e que apresentam um desafio, não somente à clínica psicanalítica, mas à clínica médica, se apresentam como uma resposta a estes imperativos, mas uma resposta em negativo. Então, nós temos, em resposta à injunção de ter um corpo belo e saudável, a anorexia, a bulimia, e também poderíamos incluir aí talvez a toxicomania. Quanto a ser rico e famoso, o que se apresenta é a exclusão social e a delinqüência, sobretudo na forma como aparece, em sua expressão recente, a delinqüência entre os jovens de classe média e média alta. A respeito da injunção a ter uma vida sexual intensa e prazerosa, aumentam os casos do que os médicos chamam, eufemisticamente, não de impotência, mas disfunção erétil. E, recentemente, há uma tentativa de definir clinicamente um equivalente feminino para que se possa encontrar mesmo medicamento para a mulher. E, finalmente, atendendo ao imperativo de felicidade, temos o mal da moda, a depressão

Notem que tais enunciados, que outrora seriam assumidos meramente como votos, anseios, apresentam-se em um caráter imperativo, sob a forma de injunções desse social anônimo às quais o sujeito se esforça para obedecer, o que lhes confere uma dimensão nova, propriamente superegóica. Observem também que nas manifestações sintomáticas que daí decorrem poderíamos perceber tanto uma submissão do sujeito a estas injunções, quanto uma maneira pela qual ele reagiria a este gozo ilimitado que lhe é imposto. Os novos sintomas da contemporaneidade podem ser lidos como um modo de reação do sujeito contra a reificação que lhe é imposta pelo laço social, onde o sintoma surge como uma derradeira manifestação contra o seu apagamento.

Referências bibliográficas

FREUD, S. O ego e o id. In Ed. Standard Brasileira, vol. .R.J.: Imago, 197

________. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. In E.S.B. vol. R.J.:Imago, 197

Krutzen, H. Index

LACAN, J. O Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud. R.J.: J.Z.E., 1979.

________. O Seminário, livro 3, As psicoses. R.J.: J.Z.E., 1988 (2a ed.revista).

________. O Seminário, livro 10, A Angústia. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 1997 (edição sem fins comerciais).

________. O Seminário, livro 18, De um discurso que não seria do semblante. Recife: C.E.F., 1995 (edição sem fins comerciais).

________. O Seminário, livro 20, Mais…ainda. R.J.:J.Z.E.,1982.

O Supereu e o Imperativo de Gozo Read More »

Las Meninas? E o sintoma

Clarice Gatto

?Uma filha é para seu pai um tesouro a vigiar, e o cuidado dela tira-lhe o sono para que não suceda que passe a flor da sua idade sem se casar, e, quando enfim estiver com seu marido, lhe não seja odiosa.?

Eclesiástico, 42, 9.

?Las Meninas? ?Vênus e seu espelho?

Las MeninasVênus

(Este trabalho teve início em 1996, por ocasião do IX Encontro Internacional do Campo Freudiano em Buenos Aires… Lembro-me do embaraço que me causou o título do livro organizado por Fernando Marías, Otras meninas[1] que encontrei na Livraria do Museu de Belas Artes. Porque em português nós dizemos outras (com u), e otras pertence ao modo de falar das crianças.

Eis aí, por onde tudo começou: por um equívoco ?amoroso?… lá onde a relação genital proibida se mistura à excitação libidinal, atualizando o que regressa. Despertando o passado e o presente ao mesmo tempo, vindo significar no futuro o ciúme que invadiu meu corpo… Ou, no dizer que se segue, a partir dessa articulação do simbólico com o real, através do equívoco significante com a letra, algo se inscreve, causa desejo e o trabalho da Durcharbeiten se faz.)

*

A arte ilusionista e barroca do grande colorista Diego Rodríguez de Silva Velázquez (1599-1660)[2] no século XVII – dita impressionista por Manet duzentos anos depois – encerra a repetição que antecipa um estilo. Comparando Las meninas com Vênus e seu espelho[3] encontramos em Velázquez uma leitura moderníssima do espelho. Ao apresentar a diluição da imagem especular, seu espelho desvia nosso olhar para uma imagem real…

N? O objeto da psicanálise[4], Lacan havia feito uma leitura surpreendente a partir deste quadro e do ensaio de Michel Foucault em As palavras e as coisas[5], conforme observou Antonio Quinet em seu artigo O espelho e o quadro[6]. O ?meu problema?, dizia Lacan, era estabelecer uma distinção definitiva entre a função da perspectiva (que organiza o espaço) e a da moldura (que cerne o espaço em um de dentro e um de fora) – ambas a partir do quadro e do espelho – para pensar uma ?teoria do desejo? quando da entrada do próprio sujeito no duplo campo do escópico e do invocante[7], e a implicação do analista nesta empreitada.

Além das interrogações sobre a importância em demarcar essas diferenças cruciais, Lacan também se perguntava sobre o ?fim? da análise e ?como se transfere essa dialética do objeto a, se é a este objeto a que é dado o fim e o encontro onde o sujeito deve se reconhecer. Quem deveria fornecer? Ele ou nós??[8]

Aí, parece-me que Lacan se serve de Velázquez para tomar ?Las Meninas? como paradigma de uma interrogação sobre a posição do analista: ora como espelho porque ?mostra o que não se pode ver? estabelecendo uma zona real de visibilidade, ora como quadro quando apresenta duplamente ?o que falta à imagem?: seja criando uma zona imaginária de invisibilidade entre o quadro e o público (o plano-sujeito[9] e sua relação com a fantasia fundamental[10]), seja no que deixa ver uma outra zona, simbolicamente marcada pelas diversas fendas que possui um quadro, como dizia Lacan, e por ele denominadas de ponto ao infinito (o nó do sujeito na articulação entre demanda e desejo, conforme já o havia trabalhado no seminário sobre A Identificação[11]).

No primeiro ponto tomarei o esquema freudiano da pulsão escópica para demarcar o efeito epifânico[12] que produz essa cena original criada por Velázquez. No segundo ponto, a cor e a luminosidade servirão para apresentar uma outra cena do quadro, aproximando-a da interpretação (memorável) de Velázquez da mulher enquanto sintoma e o cerne do trabalho analítico – suporte de uma construção fantasística.

Ein anderer Schauplatz[13]

No seminário O ato psicanalítico Lacan escreve: ?Quando o analista se interroga sobre um caso, quando faz sua anamnese, quando o prepara, quando começa a dele se aproximar e, uma vez que ele entre com a análise, que ele procure no caso, na história do sujeito, da mesma maneira que Velázquez está no quadro das Meninas, ele estava já, o analista, em tal momento e em tal ponto da história do sujeito. A vantagem disso é que ele saberia o que é a transferência. O centro, o pivô da transferência, isso não passa absolutamente por sua pessoa. Há algo que já está lá. Isso lhe daria uma maneira completamente diferente de abordar a diversidade dos casos. Talvez, a partir desse momento, ele chegasse a encontrar uma nova classificação clínica que não a da psiquiatria clássica, que ele jamais pôde tocar nem abalar até agora, e por uma boa razão: porque jamais pôde fazer outra coisa além de segui-la.?[14]

Dizer que o analista está na história do sujeito ?da mesma maneira que Velázquez está no quadro das Meninas? nos permite assinalar para duas maneiras diferentes de se estar na história do sujeito: ora como sujeito suposto pintor aquele que supostamente assina a cena do quadro, ora como o pintor no ato de pintar…

Lacan se utiliza das leis da perspectiva – tomada da Geometria – para usá-las como suporte da montagem pulsional, e assim aproximar a presença de Velázquez no quadro com a do psicanalista na história do sujeito.

A pulsão – der ?Trieb? – funciona para Freud ?como uma noção de fronteira entre psíquico e somático, como representante psíquico oriundo das excitações que chegam à psique pelo interior do corpo, e como uma ?exigência de trabalho? (Arbeitsanforderung) que é infligida ao psíquico em conseqüência de sua conexão com o corpóreo.?[15] Quando Freud escreve os destinos da pulsão – a inversão[16] no contrário, a volta contra a própria pessoa, o recalque e a sublimação – ele utiliza as duas primeiras para construir (ao invés de analisar) um arcabouço teórico capaz de demarcar para o próprio corpo as conseqüências psíquicas da economia libidinal – ?essa energia imensurável das pulsões?[17],[18].

?A realidade perceptiva e a realidade perspectiva se opõem, assim como a visão e o olhar?[19]. As leis da visão são aquelas do espelho, as do olhar se suportam pela construção perspectiva do quadro, tal qual uma tela entre o sujeito e o mundo como nos faz ver Magritte ao pintar uma janela no quadro e através da qual nosso ?olhar mergulha no espaço? criando-o.

O espelho de Velázquez – tanto em Vênus e seu espelho (1644-1648) quanto em Las meninas (1656-1657) – dilui a imagem especular desenhando um espectro de imagens ?reais? que funcionam como traço significante. É assim que Lacan vai dizer que ?o rei e a rainha representados no espelho são uma presença simbólica e do simbólico, um representante do espelho e não uma representação de um espelho ou de um modelo.?[20] Na verdade, o esvaziamento da imagem produzido pela apresentação dos semblantes embaçados em ambos os quadros, abre a possibilidade de uma série de interrogações: embaçado pelo tempo? Pela distância? Por que pintou um suposto casal real? Que quer dizer? Conjugando nossa visão ao olhar insatisfeito pela falta de nitidez ele nos leva a encontrar uma outra imagem – ein anderer Schauplatz – capaz de ser via de miragem para a nossa ficção! A ousadia de Velázquez está em abandonar a estética do século XVII, cuja alusão corrente entre o reflexo do espelho, o brilho solar e o lugar soberano ocupado pelo rei estabelecia a personificação das qualidades a serem respeitadas. Pois ?o corpo do rei não era uma metáfora, mas sim uma realidade política: sua presença física era necessária ao funcionamento da monarquia? como observa Foucault[21]. Em seu espelho, porém, Velázquez oferece para nós o segredo do desejo…, como veremos.

Neste ponto, Velázquez entra na história do sujeito como um significante qualquer[22]. Pois essa presença do simbólico marcada pela inconsistência da imagem especular pela via do equívoco significante com a imagem (e a imagem aí, freudianamente, funciona como significante) é pura epifania. Daí encontrarmos diversas cenas deste quadro ?assinadas? por tantos autores quantas forem as exigências pulsionais de trabalho. Por exemplo, Picasso[23] em 1957 e suas 49 versões de Las meninas, Lacan em diversos momentos de seu ensino e Foucault, no polêmico ensaio Las meninas, em 1966, abrindo uma reflexão extremamente instigante sobre a arqueologia das ciências humanas.

O quadro, nos diz Lacan, funciona como o representante da representação, pois ?latente à imagem especular há a função do olhar?. O olhar, sendo diverso da visão e se suportando da construção perspectiva, dá ?asas ao desejo? na contingência de significação (Bedeutung). Nesta perspectiva, o quadro tem a mais estreita relação com a fantasia ($ à a). Como o quadro, a fantasia[24] é uma tela que esconde e indica o real. Era o que nos apontava Freud na carta a Fliess de 2 de maio de 1897: ?as fantasias servem, simultaneamente, à tendência a aperfeiçoar as lembranças e à tendência a sublimá-las. São fabricadas por meio de coisas ouvidas e das usadas posteriormente, assim combinando coisas experimentadas e ouvidas, acontecimentos passados (a história dos pais e antepassados) e coisas que foram vistas pela própria pessoa.?[25]

No seminário A lógica da fantasia (1967), Lacan ?distingue um um imperfeito, que ele escreve ?1?, de um ?um? perfeito, que ele escreve ?I?. E de sua diferença – entre uma relação fracassada e uma relação que, por ser miticamente consumada, aparece como a razão matemática deste fracasso – ele deduz a escritura I >1, cuja conseqüência lógica seria que a este 1 imperfeito falta alguma coisa (1 – a, escreve), o objeto do fantasma? (fantasia) [26]. Neste mesmo seminário, Lacan[27] destaca que esta lógica que a fantasia tem, imprime uma significação de verdade, a qual ocupa o lugar de um axioma, isto é, de uma proposição significante, articulada, colocada como verdadeira de saída e sobre a qual tomam apoio as outras proposições. Será nesta lógica que algo da sexualidade será subjetivado e a pergunta sobre sua origem traumática poderá encontrar ?um? destino…

Las meninas e o sintoma ou o desejo de Velázquez?

O que pinta, então, Velázquez…?

Digamos que ele pinta uma alegoria dos dois objetos sexuais (Sexualobjekte) originários do ser-falante – sich selbst (si mesmo) e das pflegende Weib (a mulher que cuida) – tal qual assinalava Freud em Para a introdução do narcisismo, caracterizando o narcisismo primário como a expressão dominante na ?escolha de objeto? (Objektwahl) sexual.? [28] Essa alegoria, propiciada no quadro pela dimensão do olhar e da tela em seu interior, situa Velázquez na história do sujeito.

Vemos então si presentificar uma seqüência de olhares ao infinito que não se encadeiam entre si mas remetem sem cessar ao tempo anterior de uma história (pulsional), e de ?onde a partir de uma certa data, historicamente situável, o sujeito, nomeadamente o pintor, se fez presente no quadro…?[29], como revela Lacan ($ à D). Já na tela vemos desdobrar diante de nós a função da moldura que cerne o espaço em um de dentro e um de fora, e o Witz[30] do pintor a nos pregar uma peça, quando em seu gesto acena para a ausência de significante que represente a mulher, seu gozo, e de onde emerge o significante de A barrado[31], S(A). Assinalando com sua arte o que ?cessa de se escrever?[32], Velázquez abre a possibilidade de acesso a um além, que Lacan desde A ética da psicanálise chamava o real.

O que resta, em realidade, é esse ?quadro vivo?, essa ?cena estranha?, que ocupou tantos críticos de arte, como lembrou Lacan e certamente como ele disse, por ?inscrever, ao mesmo tempo, o lugar de objeto (a) e a relação com a divisão do sujeito.?[33] Desse jeito, Velázquez nos lembra um dizer de Freud: ?é de todo modo duvidoso que se torne possível, sobre a base da elaboração do material psicológico, se obter a separação e a classificação das pulsões?[34]. Pois aí haverá ?uma mistura muito ampla e variável nas suas proporções…?[35] Haverá verdadeiramente cisão do ser-falante, o campo do analisável se perde cedendo lugar ao campo ficcional, às construções subjetivas propriamente ditas ($ à a).

?A pulsão escópica (Schautrieb), nos diz Freud, é mesmo auto-erótica no começo de sua atividade; ela tem porém um objeto, mas ela o encontra no próprio corpo. Somente mais tarde ela será conduzida (pela via da comparação) a trocar o objeto com um análogo do corpo alheio (fremd).?[36] O olhar, diz Freud, precede o ser olhado[37].

Assim, ao compararmos Vênus e seu espelho com Las meninas, encontramos em Velázquez um pintor que pinta como um poeta, que evoca o ?movimento? ora como um contemporâneo da ciência moderna, ora como o mais feliz de todos os ritmistas… No primeiro quadro é a beleza que está em jogo, o belo corpo dá forma à mulher que se espalha no primeiro plano da tela; no segundo, porém, a ação que o move é a do sublime, a sublime ação (sublimação[38]) de pintar os signos inapreensíveis do que causa o desejo, cuja ?ausência de forma?[39] (Kant) tende a provocar ?o esvaziamento da dialética?, imprimindo à imaginação uma mudança de parceiro (e por que não de sintoma?), pois na ação do sublime os signos se deslocam do entendimento à razão… É o poeta – como disse certa vez Lacan – que se endereça a essa razão. É nisso que a Psicanálise se aproxima da arte![40], onde a instância da letra é a razão do inconsciente desde Freud[41], como interpretou Lacan.

As quatro ?meninas? ? as duas pajens, a infanta Margarita e a anã ? no segundo plano do quadro podem muito bem significar momentos na construção de uma fantasia… Através da luminosidade e do jogo de cores memoravelmente distribuídas nessa cena magnífica, eis aí o desejo de Velázquez e por onde o olhar tornando-se objeto invocante nos faz ver as inquietações provocadas pela interrupção dos movimentos retratados na tela.

Rio de Janeiro, abril de 2001.

Resumo: Esse artigo retoma o problema posto por Lacan no seminário O objeto da psicanálise entre a função da perspectiva (que organiza o espaço para o sujeito) e a da moldura (que cerne o espaço em um de dentro e um de fora) ? ambas a partir do quadro e do espelho em Velázquez – para pensar uma ?teoria do desejo? quando da entrada do próprio sujeito no duplo campo do escópico e do invocante e a implicação do analista nessa empreitada.

Abstract: That article retakes the problem put by Lacan in the seminar The object of the psychoanalysis between the function of the perspective (that organizes the space for the subject) and the one of the frame (that sifts the space from within in and one of out) ? both starting from the picture and of the mirror in Velázquez – to think a “theory of the desire” when of the own subject’s entrance in the double field of the escopic and of the invonker and the analyst’s implication in that taskwork.

Las Meninas? E o sintoma Read More »

Doador Revisitado

Robson de Freitas Pereira

“Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, Uma série de contas-entes ligadas por um fio memória, Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?”

Álvaro de Campos

Atenção! Doador remontado/reconstruído. Preparem seus olhos, seus corpos, suas angústias para nova oportunidade de apropriação. Outra ocasião de renovar a “ética do dom” na passagem da inutilidade ao desejo.

Sabemos que mesmo para quem viu, entrou e passeou pelo corredor instalado na II Bienal do Mercosul, esta será uma experiência nova. Afinal, o Galpão das Tesouras nem existe mais. Um incêndio o levou. O espaço agora é outro, diferente, como será o efeito?

Certamente haverá algo novo, como acontece em toda repetição verdadeira, aquela que vale. A repetição do mesmo só acontece em nosso imaginário, quando queremos fixar alguma identidade, algum sofrimento que dê sentido a nossas vidas. Mergulhados neste oceano de linguagem, às vezes, somos acossados pelo medo, pela vertigem, pela voragem, e tememos não saber nadar.

No Doador trata-se de um mar de objetos. Ou melhor, frutos retirados de um mar de memórias para nos empurrar numa travessia. Duas portas sempre abertas, sinalizando que entrada e saída dependem apenas de onde se está chegando. Um corredor de quase dez metros de comprimento, onde 270 objetos com um sufixo em comum (DOR) espreitam nosso olhar. Qual dor eles tentam conjurar? Não sabemos antecipadamente.

Talvez se trate de lidar com a perda, inicialmente pura perda, que se transforma em falta para impulsionar um desejo. Daí um sentido para revisitar.

Quando Álvaro de Campos fez Fernando Pessoa escrever “Lisbon revisited” havia uma perda em jogo. Tempo da morte da mãe. Mas para fazer o luto, o poeta escreveu sobre sua cidade, com título em outra língua. O inglês, sua língua adotiva, sua pátria, sendo coerente com sua afirmação: minha pátria é minha língua.

“Nada me prende a nada…”.

Outra vez te revejo cidade da minha infância pavorosamente perdida…

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,

E aqui tornei a voltar, e a voltar

E aqui de novo tornei a voltar?”.

O sujeito que retorna não é mais o mesmo que partiu, tornou-se “estrangeiro aqui como em toda parte/ casual na vida como na alma”. Casual e errante, como todo sujeito que elabora uma perda. Como todos nós. Doadores.

A vida já foi tomada como uma errância, uma trajetória determinada pelas circunstâncias. O corredor pode ser uma de suas metáforas, da mesma forma que uma estrada. Um corredor do edifício de nossa infância, ou adolescência, onde íamos visitar os avós, os tios, as namoradas. Estranho e familiar “umheimlich”. Um “déja vu” que se transformou. Já estivemos ali e, simultaneamente, não reconhecemos todos os seus sinais, todos os seus objetos. Nem poderíamos, nem todos eles nos pertencem. Pertencem aos outros “que no son si yo no existo/ los otros que me dan plena existência”, na voz de Octavio Paz. Pertencem também a um lugar Outro, lugar onde habita a palavra dos meus parentes e vizinhos, mas também dos antepassados, que autorizam minha trajetória.

Este Outro, lugar de uma tradição da qual eu me aproprio para poder dispensá-la. Tenho que passar por suas marcas, absorver suas dores, lutar contra seus ensinamentos, saber que eles agem sobre mim, sobre meu corpo, para poder me despedir, me fazer singular.

Como fez Bob Dylan, em “Highway 61 Revisited”. Este que nascido Zimmerman, adotou a estirpe dos poetas ingleses (Dylan Thomas) e fez seu o canto folclórico americano. Revisitou, fez-se hóspede da “Highway 61” que atravessa os estados do Sul. Corredor por onde passaram os menestréis que cantaram as glórias e os sofrimentos da América. Brancos e negros. Quando pensaram que iria instalar-se confortavelmente, Dylan politizou suas letras (Like a rolling stone, Ballad of a thin man) e, suprema ironia, eletrificou o folk. Coisa que pouco tempo depois a Tropicália faria com o rock e a música popular brasileira na época dos Festivais. Ambos recebidos com vaias estrondosas. Apupos estrepitosos de um tabu que desmoronava. Revisitar, diz o dicionário, é também infligir, impor. O novo, às vezes se impõe, a custa de assolar nossas convicções, mostrando o reverso da medalha.

Do dejeto ao desejo

Demonstrar em ato criativo a passagem da inutilidade ao objeto de desejo é uma das funções do doador. Os objetos que ali estão tiveram uma utilidade, um dia. Com o tempo, perderam sua utilidade primeira. Seu valor de uso. Com a inovação tecnológica, com a produção em massa, surgiram outros objetos mais afeitos a exigência de novidade de nossos desejos e ao imperativo de consumo. Com o tempo alguns tornaram-se inúteis, outros dejeto. Gastou-se o valor de troca. Não gozávamos mais com eles. Não serviam ao nosso gozo, nem ao dos outros.

Entretanto, pelo simples fato de seu nome possuir um sufixo comum, uma sílaba, uma palavra puderam mudar de estatuto. Transformaram-se em causa/impulso de um desejo. Coisa difícil nestes tempos de consumo rápido e transações instantâneas. A lógica de nossa cultura determina que os objetos tenham um valor de troca cada vez mais rápido e perecível. Rapidamente transformam-se em lixo biodegradável ou não. Mas estes objetos inúteis podem reverter a sua e a nossa posição, bastou alguém dispor-se a recebê-los a ser receptador das doações, suportar a angústia e indicar que um desejo estava colocado em exercício. Não precisávamos saber sua causa última, afinal no princípio está uma perda, uma falta, um intervalo, uma dor. Se reconhecemos a distância podemos arriscar o salto. Talvez houvesse um desejo de compartilhar, de dar outro destino ao imperativo que obriga a jogar fora as coisas “inúteis”. Revertendo um pouco nosso destino narcísico . Louise Bourgeois escreveu certa vez que os objetos de arte podem ser perfeitamente inúteis frente às exigências pragmáticas. Ela fazia um comentário sobre a coleção de estatuetas que Freud recolhera ao longo da vida. Para espanto dos hagiógrafos que vêem um sentido estrito em cada ato dos gênios, ela ousadamente afirmou que aquela coleção de terracotas não precisava ter nenhum sentido para a psicanálise, ou mesmo para a história da arte. Não precisavam ter contribuído na elaboração de qualquer conceito, assim como questionava até mesmo seu status de obras de arte. Simplesmente podiam estar ali para deleite pessoal de Freud, para dar um alívio no trabalho estafante de escutar o sofrimento das pessoas. Louise Bourgeois sublinhou o valor simbólico das estatuetas de Freud. Este simbólico que se engendra com o real e o imaginário em nossa vida.

O doador cumpre esta função; possibilita reverter o valor de uso, ir além do gozo efêmero com o objeto de consumo, permitindo transformar a angústia do encontro com o dejeto no exercício de um desejo. É uma forma de reinvenção da cerimônia do “potlacht”, onde originalmente eram queimados os bens mais preciosos. Agora são os objetos inúteis que adquirem um outro valor. Um abridor de latas enferrujado (cego), pode nos ajudar a enxergar melhor. Um pequeno apontador de lápis permite nos orientar em direções diversas. Enfim, quem se dispuser a colocar “algo de seu”, a simbolizar a “libra de carne” que Shakespeare marcou como preço de nossa humanidade no “Mercador de Veneza” pode percorrer o corredor, fazer a experiência, enfrentar o “perigo” de uma travessia. Os objetos estão ali, suspensos no tempo e no espaço. Sabemos que o doador é evanescente, mas o tempo da passagem é contingente para relançar nosso desejo e abertura para uma invenção que é própria e compartilhada simultaneamente.

Sobre o autor

Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

* “Doador revisitado” , publicado

in “Apropriações/coleções” , catálogo da exposição.
Curadoria: Tadeu Chiarelli, Edição: Santander Cultural, Porto Alegre, 2002

Doador Revisitado Read More »

O Desejo Obsessivo em “Conto de Fadas”

Marcus do Rio Teixeira

Pode parecer estranho que um psicanalista escolha falar sobre uma obra de Vladimir Nabokov. Afinal, esse escritor russo, naturalizado norte-americano, teve durante toda a sua vida dois grandes inimigos declarados: o comunismo e a psicanálise. Do regime bolchevique ele abominava a tirania que o havia obrigado, juntamente com sua família, a fugir da União Soviética para nunca mais voltar, e a massificação ideológica que reduziu a vida social e cultural da sua terra natal à mediocridade. Da psicanálise, sobretudo norte-americana, que era a que ele conhecia, era a estreiteza de visão capaz de reduzir uma obra a um punhado de chavões que ele não aceitava. Hoje, após a queda dos regimes do Leste europeu e após a crítica de Lacan à psicanálise norte-americana, é preciso reconhecer que as críticas de Nabokov à revolução soviética eram fruto de um conhecimento de perto da realidade do seu país, assim como os seus comentários ácidos contra a psicanálise deveriam ser referendados por todo analista contemporâneo, ou quando nada por aqueles familiarizados com o retorno a Freud de J. Lacan.

A obra que trago a vocês hoje é um conto, publicado originalmente em russo em 1926 (a obra literária de Nabokov foi escrita em russo até 1938) e traduzido para o inglês com revisão do autor para uma edição americana em 74. Devido ao objetivo da nossa intervenção torna-se necessário revelar o seu enredo e prejudicar, infelizmente, o prazer da leitura daqueles que ainda não o conhecem, revelando o seu (interessantíssimo) final.

Somos apresentados inicialmente ao jovem Erwin, habitante de uma cidade européia (muitos dos personagens de Nabokov nessa fase da sua produção literária são imigrantes russos como ele ou europeus). Acerca de Erwin, somos informados que é “morbidamente tímido”, ou seja, que tem uma forte inibição que o impede de aproximar-se das mulheres. Ele tem, contudo, uma fantasia, e o autor repete no início do conto o mote, que retornará mais adiante: “Fantasia – o frêmito, o êxtase da imaginação irrefreada!” Erwin mantém um harém imaginário, constituído pelas mulheres desejáveis que ele encontra na rua e “coleciona”. E o autor acrescenta: “Como era feliz o nosso Erwin (…)!” Uma tarde, enquanto dedica-se ao seu passatempo favorito, observando e “colecionando” as mulheres enquanto descansa na mesa de um café, Erwin cede um lugar na sua mesa a pedido de “uma senhora alta, de meia idade” que é também descrita como “corpulenta”, com “um rosto emplastrado de pó-de-arroz e traços algo masculinos”. Essa senhora revela ser capaz de ler a sua mente. Trata-se na verdade, do Diabo em pessoa, que, como ele revela, costuma renascer três ou quatro vezes a cada dois séculos, encarnado num ser humano. O mesmo Diabo comunica então que vai morrer em breve e está disposto a realizar o desejo do jovem Erwin, entregando a ele todas as mulheres que ele escolher entre o meio-dia e a meia-noite do dia seguinte. Acrescenta que fará isso sem esperar nada em troca: “Não preciso de sua alma para nada”. Antes, ela havia dito “Gostei de você imediatamente. Essa timidez, essa imaginação audaciosa”. Há porém uma única condição: as escolhidas têm de perfazer no total um número ímpar. Os leitores poderiam pensar que o final do conto pode ser previsto desde já: o personagem não conseguirá chegar a um número ímpar. Essa seria a solução que um escritor mediano encontraria; não é o caso, entretanto, de Nabokov, que nesse inicio da sua carreira literária já apresentava as marcas da sua genialidade.

Acompanhamos então o despertar de Erwin na manhã seguinte, não sem um irônico comentário do autor sobre a suposição de que o seu encontro com o Diabo havia sido um sonho: “Esse recurso retórico é muito comum nos contos de fadas e, como no contos de fadas, nosso jovem cedo descobriu que estava errado”. Logo após o meio-dia ele inicia a sua lista, ao perceber uma jovem de costas da qual admira a curva da nuca, e que ao voltar-se para ele emite o sinal combinado pelo Diabo como indicativo da sua inclusão no harém. Mais quatro mulheres adiante, Erwin reencontra o Diabo, que lhe adverte: “Excelente. Número ímpar. Eu o aconselharia a parar por aí”; e combina um encontro à meia-noite numa casa especialmente construída para a realização do seu desejo. Ele retorna à sua casa, mas, insatisfeito com a pequena quantidade do seu harém, parte novamente em busca de outras para ampliá-lo. Assim é que, algumas horas e algumas mulheres depois, ele exclama: “Onze horas e onze mulheres. Acho que chega”. Mas um encontro casual com um senhor acompanhado pela sua filha adolescente precipita o sinal de que o harém aumentou para doze. É um momento tenso para Erwin, que tem que encontrar uma mulher que desperte o seu desejo em meia hora. Mas ele se consola dizendo: “Tenho certeza de que encontro outra (…) Talvez seja a melhor de todas” (grifo nosso).

E de fato encontra. Uma jovem por quem ele é inexplicavelmente atraído, que passa por ele rapidamente, e a quem ele segue desesperadamente, na esperança de ver-lhe o rosto. Nabokov prolonga o suspense até o final, quando o personagem finalmente consegue alcançar a moça e ver-se face a face com ela poucos segundos antes da meia-noite. “Virou-se para ele e, na luz que o lampião lançava através das folhas verde-esmeralda, Erwin reconheceu a moça que pela manhã brincava com o cachorrinho preto e felpudo na alameda de cascalho – e imediatamente relembrou, imediatamente compreendeu todo o seu charme, seu terno calor, seu esplendor incalculável”. A 13ª revela ser, na verdade, a 1ª da lista, o que faz com que esta perfaça um total par. É o fim da linha para Erwin, que encontra o Diabo esperando no carro e despede-se, rumando para casa.

Além do surpreendente e irônico final com que nos brinda, Nabokov nos deixa algumas pistas para compreendermos o desejo do seu mal-sucedido personagem. Em primeiro lugar, o que atraiu verdadeiramente Erwin na jovem que passava, e da qual não pôde ver o rosto até o encontro fatídico à meia-noite? Deixemos a palavra com o autor: “Só viu pelas costas, e não saberia explicar de onde vinha o desejo tão lancinante de ultrapassá-la para ver seu rosto. É claro que se podem escolher palavras ao acaso para descrever-lhe o porte, o movimento dos ombros, a silhueta do chapéu – mas para quê? Alguma coisa que transcendia os traços visíveis, uma espécie de atmosfera especial, uma excitação etérea, mantinha Erwin fisgado”. E mais adiante: “O que será que o atraía? Não seu modo de andar, a forma de seu corpo, mas algo mais, alguma coisa fascinante e insopitável, como se uma corrente de alta tensão a circundasse: simples fantasia, quem sabe, o frêmito, o êxtase da imaginação (…)” E temos aqui mais uma vez o mote com o qual o autor introduz o conto.

Contudo, perguntamos, o que atraiu Erwin a primeira vez que viu a moça, no início da sua caçada? Voltemos a esse momento: “Em meio a esse variegado cenário, Erwin atentou para uma moça vestida de branco que se acocorava para pentear, com dois dedos, um gordo e peludo filhote de cachorro com verrugas na barriga. A cabeça inclinada deixava a descoberto a parte de trás de seu pescoço, exibindo o ondulado das vértebras, a penugem alourada, a terna depressão entre as espáduas, enquanto o sol, furando as folhagens, encontrava fios dourados em seus cabelos castanhos”. Ou seja, a primeira vez que a vê e que interessa-se por ela, escolhendo-a como a primeira da sua lista, Erwin a vê de costas. Da mesma maneira, portanto, como a vê ao reencontrá-la pela 2ª vez, no afã de perfazer um número ímpar e sente-se novamente atraído por ela. Atração esta, como vimos, para a qual não encontra nenhuma explicação plausível.

Sentimo-nos autorizados, portanto, com licença de Nabokov, a supor que Erwin sabia que já conhecia a moça, que esta já fazia parte da sua lista. Sabia portanto que ao escolhê-la como a 13ª estaria perdendo todas as outras (além dela própria). Que Erwin inconscientemente sabia que a última da sua lista era de fato a primeira é atestado pelas diversas referências ao caráter inefável, impreciso, nebuloso daquilo que nela o atraiu, ao contrário das outras, para as quais ele tem uma justificativa bastante materialista para incluí-las na sua lista. Nesse ponto ele estava certo quando disse que encontraria no final “a melhor de todas”. Para ele a 13ª, a última da lista, era de fato a primeira, a que inaugura a lista abrindo a possibilidade da realização do desejo e ressurgindo no final para confirmar a sua qualidade de objeto do desejo impossível, fechando todas as possibilidades e fazendo ruir toda a lista. É essa uma, essa mulher de carne e osso, que ele não pode ter, e que é preciso dar um jeito de perder para que possa continuar tendo todas no seu harém de fantasia. É o providencial desmoronamento da sua lista que garante que o seu desejo seja mantido, mantido enquanto impossível de ser realizado. E que garante também que o objeto do desejo seja mantido a uma distância segura, que só possa ser alcançado na fantasia. Uma variante polissêmica permitiria tomar esse encontro com a 13ª como uma forma da perda de interesse pelo objeto no momento em que este é alcançado. Quando Erwin alcança a moça, ela já não serve mais; qualquer uma, nesse momento, serviria, menos ela.

Erwin trabalha, portanto, pelo fracasso da realização do seu desejo. Lembremos que, no início do conto, quando ele nos é apresentado como um jovem “morbidamente tímido”, colecionando mulheres num harém de fantasia e esquivando-se delas na realidade, o autor ao mesmo tempo comenta: “Como era feliz o nosso Erwin (…)”. Feliz ele era na situação inicial, na qual mantinha, através da sua fantasia, o seu desejo suspenso da sua realização. Ao que parece a única perturbação nessa situação de felicidade é o aparecimento desse Diabo generoso e benfazejo que ele não invoca e que lhe oferece a realização da sua fantasia sem cobrar absolutamente nada em troca. Talvez, se ele tivesse exigido a sua alma como pagamento, as coisas se tornassem mais fáceis para Erwin, mas nem isso lhe é cobrado. A realização da sua fantasia lhe é oferecida gratuitamente, e a partir daí ele vai tentar evitá-la a todo custo. E o único recurso que lhe resta para isso é a exigência banal do número ímpar de mulheres. Mesmo para isso é preciso contornar a ajuda desse solícito Diabo, que intervém no meio da busca para advertir-lhe mais uma vez da necessidade de manter um número ímpar.

É interessante, aliás, que Nabokov tenha encontrado para o Diabo uma encarnação feminina. Esse Diabo generoso e benfazejo é uma mulher, e não somente uma mulher, mas uma coroa alcoviteira. Propiciadora desinteressada da realização da fantasia do personagem, ela chega a dizer em certo momento que “sabe” que Erwin quer incluí-la no seu harém, para acrescentar logo em seguida que isso é apenas uma brincadeira. E o próprio Erwin divaga, a certa altura da sua busca: “Certamente, ela vai ver tudo escondida, e por que não? Dá um toque ainda mais especial”. Erwin se coloca, portanto, na sua fantasia, a serviço do gozo perverso, voyeurista, desse Outro.

Esse Outro generoso, poderíamos qualificá-lo de maternal, não pelo fato óbvio de ser uma figura feminina mais velha que o personagem, nem tampouco pela sua solicitude em relação a este, mas porque o induz à demanda. De fato, na sua primeira aparição, o Diabo, como vimos, não é invocado, algo pouco comum nos relatos literários em que aparece. Mesmo na conclusão do seu pacto Erwin nada pede, tudo lhe é oferecido. É preciso então que ela faça uma segunda aparição, inteiramente desnecessária, para perguntar a Erwin: “Como vão as coisas?” E nesse momento Erwin chega finalmente a fazer uma demanda: “Seria bom que no começo elas estivessem vestidas, quer dizer, que apareçam exatamente como estavam quando eu as escolhi. E que sejam muito alegres e carinhosas”. Está feita a demanda, que o Outro materno prontamente aceita.

Esse Outro obsceno, facilitador de sexo e supostamente voyeurista, que induz o personagem a tomar o seu desejo transformando-o numa demanda, quer também incluir-se na lista – em que lugar? antes da primeira? (Freud vê na etiologia da neurose obsessiva uma satisfação sexual precoce). Cabe ressaltar, também, que a morte desse Diabo feminino no final do conto é inteiramente desnecessária, do ponto de vista estritamente literário. Em termos da narrativa, a saída de cena do Diabo após o não-cumprimento da sua exigência do número ímpar poderia perfeitamente dispensar o recurso à sua morte. O obsessivo, como sabemos, mantém um flerte constante com a morte, seja através da agressividade que dirige ao outro (ao semelhante), seja por vislumbrá-la como único limite possível às suas infinitas dúvidas e cogitações. Erwin não pode ter uma mulher porque deve esperar a 2ª da lista e a seqüência; não pode ter cinco, porque esse número não o satisfaz; tampouco pode ter onze, porque surge uma 12ª para atrapalhar; finalmente não pode ter treze porque a 13ª é, de fato, a 1ª. Além do próprio caráter metonímico do desejo, o que essa lista revela é o movimento circular, repetitivo, do desejo obsessivo, no qual a lista infinita de objetos nunca chega a um total definitivo, mas deixa sempre o sujeito na carência. Só a morte, ele acredita, pode por fim a esse círculo vicioso de um desejo estéril e repetitivo. E sobre essa Diaba que vai recair, nesse caso, a agressividade mortífera. Convenhamos, alguém poderia lembrar-nos que a nossa interpretação nesse ponto seria excessiva, pois não é Erwin quem mata o Diabo. Mas, enfim, como nos lembra Nabokov, é só um conto de fadas. * Texto apresentado no 1o Congresso Internacional do Colégio de Psicanálise da Bahia, em julho de 96 e publicado nos Anais do Congresso, Urânia Tourinho Peres e Ma Tereza Ávila Dantas Coelho (orgs.), Salvador, 1998. Referência 1) “Conto de fadas”. In Perfeição, S.P.: Cia das Letras, 1996.

O Desejo Obsessivo em “Conto de Fadas” Read More »

Elogio da Tradução

Marcus do Rio Teixeira

Saboreei numerosas palavras.
Jorge Luis Borges

Sempre na berlinda, injustamente assimilada à traição, a tradução é lembrada, na maioria das vezes, numa comparação desfavorável com o original e, bem mais raramente, como merecedora de um elogio. É o mestre Borges, contudo, quem agradece à sua ignorância do idioma grego o contato mais aprofundado com a obra de Homero através das múltiplas versões de múltiplos sentidos. Até o mais rigoroso ? ou mais pedante ? dos lacanianos, na solidão do seu consultório, tendo de optar entre a leitura de um texto de Lacan no original e uma boa tradução, por certo preferirá esta última, cotejando-a eventualmente com o texto de origem para dirimir dúvidas em passagens controversas. De fato, a visão mais aceita hoje em dia é aquela que considera a tradução não apenas uma mera cópia da obra em outro idioma, mas um novo trabalho de criação (entre nós, Haroldo de Campos prefere falar em transcriação), que permite ao leitor experimentar um novo prazer de leitura.

Estamos falando, neste caso, do texto literário. O texto científico situa-se num registro totalmente diverso, por colocar em primeiro plano a necessidade de transmitir uma determinada informação e pelo apagamento do sujeito que o discurso científico preconiza. Já o texto psicanalítico, como não podia deixar de ser, herda da psicanálise um estatuto mais complexo; se por um lado tem em comum com o texto científico a transmissão de uma informação e a busca da exatidão teórica, ele deve contar sempre com a irrupção do sujeito e com a equivocidade do significante ? o que, por outro lado, o aproximaria do texto literário. Deixo a tarefa de conciliar estas contradições a cargo dos apreciadores daquela fase de Lacan em que ele acreditou poder trazer algo do rigor da matemática à teoria psicanalítica.

A minha experiência profissional, de início como psicanalista e leitor, em seguida também como editor, levou-me a estudar e comparar ? e, hoje em dia, a revisar ? as traduções dos textos psicanalíticos para o português. Talvez seja a partir daí que eu me permita dizer duas ou três coisas sobre esse tipo de tradução; em primeiro lugar sobre o aspecto ?literário? ou estilístico, em seguida, sobre o aspecto ?científico?, ou, melhor dizendo, teórico.

A preferência pessoal fala sempre mais alto quando se trata do primeiro aspecto e, quanto a mim, esta recai sobre a tradução que enfatiza a língua de chegada ? no nosso caso, o português ? e prioriza a fluência, sem nos dar a impressão de um texto escrito por um estrangeiro que não domina bem nosso idioma. Daí a minha impaciência com os galicismos, que me parecem um traço de subserviência à língua estrangeira ou mesmo um sinal de preguiça mental, como os anglicismos dos adolescentes ?micreiros? que dizem deletar (recentemente dicionarizado, inclusive) por não saberem traduzir to delete por apagar, suprimir, cancelar, eliminar, etc. Algumas traduções de textos lacanianos parecem ter sido escritas num novo dialeto que mistura os vocabulários e as sintaxes do português e do francês.

No seu ABC da literatura, Ezra Pound alerta sobre a deterioração da língua, cujos exemplos mais flagrantes seriam a linguagem da política e, atualmente, da mídia. De fato, ambas são exemplos dessa linguagem rasa, burra, de vocabulário escasso e sintaxe empobrecida que, para Pound, representa o estágio mais avançado do estiolamento do idioma de um povo. Como medida preventiva e curativa ele propõe o seu paideuma, uma seleção literária do que os escritores produziram do melhor, feita para ser consultada com facilidade pelas novas gerações. O empreendimento crítico poundiano serve para nos lembrar que aquele que aspira ser um bom tradutor de textos psicanalíticos tem mais a aprender freqüentando as obras dos grandes escritores do nosso cânone do que compulsando as obras completas de Freud e Lacan.

Isso nos conduz ao segundo aspecto da tradução do texto psicanalítico. Evidentemente, este diz respeito a uma disciplina que compreende, entre outras coisas, uma prática clínica e um corpo teórico bem elaborado, com todo o aparato conceitual que lhe é específico. Não podemos, portanto, tratar uma tradução desse tipo com critérios puramente literários. Há de se estabelecer, por exemplo, um acordo quanto à tradução dos conceitos, o que não é um problema pequeno considerando a babel das versões existentes hoje em dia. Imaginem, só por divertimento, uma mesa redonda sobre a Verleugnung composta por quatro ou cinco analistas: o público poderia ter a surpresa de ouvir cada um deles referir-se ao tema da mesa com um nome diferente!

Algumas vezes, encontro em artigos e traduções recentes de autores brasileiros palavras-valise e conceitos lacanianos citados no original. Esse tipo de procedimento me parece absolutamente injustificável, uma vez que já existem há vários anos ótimas traduções para tais termos, muitas vezes obra de tradutores anônimos. A merecida consagração dessas traduções é o resultado de um longo processo de experimentação e aprimoramento, até se chegar a um termo que ganhe aceitação na comunidade analítica. O estudo desse processo pode ser extremamente útil para se compreender e elaborar a tradução contemporânea dos conceitos lacanianos.

Tomemos, por exemplo, o caso de parlêtre. Nos anos 70, tentou-se impor o uso de falesser, que não pegou, é óbvio, por ser demasiadamente marcado pelo sentido de morte, não presente no original. De circulação mais restrita, falente não ganhou adeptos, provavelmente devido à sua esquisitice. Fala-ser foi sem dúvida a opção mais pobre, por desdobrar de modo didático o neologismo lacaniano. Por fim, falasser consagrou-se como o termo preferido pelos autores e leitores; uma opção inteligente, pois traduz com perfeição o neologismo juntando duas palavras apenas com a duplicação do ?s?, para impedir que este soe como um ?z?, como observa Francisco Settineri. Note-se, entretanto, que ainda ficou de fora o sentido de letra (lettre), presente no original.

Há também uma espécie de ?subcategoria? das expressões lacanianas cuja especificidade eu gostaria de comentar. Sua característica principal é a de produzir homofonias perfeitas em relação a outros termos, as quais são impossíveis de serem distinguidas pela escuta. Essas expressões só podem ser percebidas, só podem ?surgir? a partir da leitura. Elas foram criadas preferencialmente para a escrita, em vez da fala, portanto. Sem forçar muito a memória, me ocorrem dois exemplos: sinthome e hommossexuel, cujos pares homófonos, é claro, são symptôme e homossexuel. A minha opinião é que, em se tratando de palavras que só se distinguem na escrita, sua tradução deveria privilegiar igualmente o jogo da escritura e da letra, em vez de buscar uma diferença pela sonoridade. É por isso que para traduzir sinthome me parece mais justo acrescentar apenas a letra ?h? (sinthoma), abandonando alternativas mais complicadas como sinthomem, que privilegiam o significado e não o significante.

Quanto a hommossexuel, a dificuldade de tradução é ligeiramente maior. No Seminário 20, Lacan referiu-se às histéricas como hommossexuels, não por serem lésbicas, mas por ?faire l´homme?. O neologismo lacaniano é extremamente sutil: a letra ?m? duplicada remete a homme (homem), em vez de homo (semelhante). O termo passou batido pelo tradutor do Seminário, que tascou homossexuais mesmo. Há algum tempo tomei conhecimento de uma tentativa de tradução como homemsexual. A opção me parece um tanto pesada e não faz jus à sutileza do original. É obvio que, se assim o quisesse, Lacan poderia muito simplesmente ter dito hommessexuel; se ele não o fez, se preferiu o recurso mínimo da repetição de uma letra, creio que deveríamos respeitar essa opção. Há alguns anos eu mesmo sugeri a tradução homomsexual, colocando o ?m? a mais no final, como em homem no nosso idioma. Ainda não tenho certeza, contudo, de que esta tradução seja satisfatória.

Problemas como esses me levaram a propor um esboço de um Glossário geral das traduções consagradas dos conceitos freudianos e lacanianos no Dicionário de Psicanálise ¾ Freud & Lacan, que é a nossa versão brasileira do Dictionnaire da Association Lacanienne Internationale. Trata-se de um work in progress, como o próprio projeto do Dicionário, aliás. Para mostrar que o próprio autor destas mal traçadas (e bem digitadas) linhas não é ele próprio imune aos equívocos da tradução, cito um problema mais recente com o qual me deparei. Ao revisar uma tradução de Letícia Patriota sobre Le graphe de Lacan, achei que poderia substituir grafo por gráfico, por julgar o primeiro um neologismo e um galicismo (vide a minha implicância com os galicismos). De fato, grafo, como substantivo masculino, não consta do nosso Aurélio, nem do velho Caldas Aulete, nem sequer do Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antonio Geraldo da Cunha, só para citar alguns. Além disso, a etimologia de gráfico é a mesma de graphe, ambas remetem à grafia.

Erro meu: grafo é palavra da língua portuguesa, do vocabulário matemático, e consta, por exemplo, da edição de 1998 do Michaellis. O que me leva a concluir que o trabalho da tradução, além de ser infindável – o que talvez não seja uma característica exclusiva sua – não nos impede, pela sua prática, de cometermos equívocos banais. E que talvez seja o amor pelo texto que nos leve a persistir em busca de uma tradução tão perfeita quanto impossível.

Referências bibliográficas

Caldas Aulete. Dicionário
CHEMAMA, Roland et allii. Dicionário de psicanálise ? Freud & Lacan, vol.1. Salvador: Ágalma, 2004 (2a edição).
CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20, Mais, ainda… Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 19
POUND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Cultrix, 1973.

Elogio da Tradução Read More »

Alcance e Limites da Psicanálise no Início do Século

Marcus do Rio Teixeira

Pretendo traçar em linhas gerais um painel acerca do alcance (no singular) e dos limites (no plural) da prática analítica no final do século 20 e arriscar, talvez, algumas especulações para o início do século 21. Para abordar esse tema é necessário, a meu ver, falar da inserção social da prática psicanalítica. De que modo a psicanálise é assimilada ou rejeitada na sociedade contemporânea? De que modo a teoria psicanalítica é aceita ou discutida pelos pensadores e cientistas?

Como exemplo dessa inserção, colhi um editorial do jornal Folha de São Paulo, do dia 10.set.1995 intitulado ?Pílulas ou psicanálise?? e que trata da polêmica psicanálise versus psicofármacos. O texto, bastante cauteloso e moderado, não deixa de frisar que os dois tratamentos ?não são excludentes?(sic), e que a psicanálise ?pode até mesmo ser mais eficiente, no sentido em que procura a causa individual de um mal individual de uma pessoa única?(sic). Ressalta, porém o caráter de ?elite? do tratamento analítico e lembra que ?As drogas, mesmo considerando que muitas delas sejam ainda caras, possibilitam o relativo alívio de sintomas num período mais curto que o psicanalítico?. Para concluir que: ?O avanço da psicofarmacologia abre a perspectiva de que a enorme massa de excluídos que hoje trata seus traumas a cachaça e espasmos de violência tenha enfim acesso a um método científico de terapia.?

Sinceramente, não posso dizer que compartilho da esperança dos editores da Folha de São Paulo de que a bilionária indústria farmacêutica se preocupe com a ?enorme massa de excluídos?, embora não negue o ?relativo alívio de sintomas?. Prefiro lembrar, em tom de brincadeira, uma novela do famoso escritor de ficção científica Philip K. Dick, autor do livro que inspirou o roteiro do filme Blade Runner. Na novela em questão, intitulada The simulacra[O simulacro], a história se passa nos Estados Unidos, num futuro não muito distante. Nessa época, o congresso americano, pressionado pelo lobby da indústria farmacêutica, vota uma lei proibindo a prática psicanalítica em todo seu território e punindo os infratores com a prisão.

Bem, saindo um pouco do clima paranóico das novelas de Philip K. Dick, caberia perguntarmo-nos: Por que a psicanálise, cem anos após a sua invenção, ocupa as páginas dos jornais como objeto de um questionamento sistemático, e até mesmo belicoso, por parte de alguns cientistas? O que faz com que essa teoria e essa prática que tanta influência exerceram, não apenas sobre o meio médico, mas sobre as letras e as humanidades durante o século 20, chegue às vésperas do século 21 sob a acusação de charlatanismo?

Não creio que essas críticas feitas por cientistas ? sobretudo norte-americanos ? , que pretendem explicar as idiossincrasias da conduta humana a partir da genética ou de teorias pseudo-evolucionistas, sejam produtos apenas da má-fé. Mais do que o ódio à psicanálise, sua abordagem padece de um gigantesco equívoco. O erro de abordagem consiste em pressupor que ambas as práticas, a psicanalítica e a psicofarmacológica, pertenceriam ao campo da ciência, e que, enquanto tal, seus métodos e progressos poderiam ser comparáveis. O que acontece, entretanto, é que a invenção freudiana inaugurou um novo campo, que não é mais aquele da ciência, que já existia antes deste, e do qual Freud foi obrigado a tomar emprestadas algumas noções no momento da construção de sua teoria. Tampouco pertence ao campo da filosofia ou da religião. Quer se aceite ou não, o edifício teórico e a prática clínica inventados por Freud sob o nome de psicanálise constituem um campo distinto, inaugural, que não pode ser assimilado àqueles que preexistiam a ele.

Ao introduzir nos anos 70 a noção de discurso como promotor de um laço social, Jacques Lacan possibilitou uma nova abordagem dessa questão. O discurso psicanalítico, surgido num momento histórico no qual os laços sociais existentes permitiram o avanço da ciência, é deste tributário, ao mesmo tempo em que o ultrapassa, ao colocar o sujeito numa nova configuração, ressaltando o objeto que causa o seu desejo. Não haveria incompatibilidade, e sim diferença de campos entre a psicanálise e a ciência. Os questionamentos acerca da eficácia e da cientificidade da psicanálise não enxergariam, portanto, que ela não deixa de ser científica por uma deficiência, mas sim pela própria constituição de seu discurso. O que não a impede de ter uma enorme eficácia em inúmeros aspectos. Eficácia, contudo, nem sempre mensurável por meio de critérios científicos.

Haverá, porém, interesse real nessa eficácia por parte da sociedade contemporânea? Ou a eficácia que realmente interessaria nos dias de hoje seria aquela do ?relativo alívio de sintomas? para que o indivíduo, sem perder tempo com a causa do seu sofrimento, possa manter-se sempre apto a produzir e, sobretudo, a consumir? Haverá lugar para uma prática que visa confrontar o sujeito à sua falta constitutiva em um tipo de sociedade que oferece a todo momento uma profusão de objetos supostamente capazes de colmatar esta falta? Colocadas as questões desta forma, o ponto crucial parece ser muito menos uma diferença entre critérios de eficácia do que entre posições éticas.

A psicanálise seria então a única voz destoante no coro dos contentes? Não totalmente. Aqui e ali surgem críticas de diversos setores que consideram que determinadas pesquisas, sobretudo na área da genética e da reprodução humana, padecem de graves falhas éticas, que poderiam conduzir a desvios, tais como a eugenia. Na tentativa de conter tais abusos, o termo bioética tem sido mencionado com freqüência nos últimos tempos.

Esse tipo de preocupação, embora certamente louvável, não me parece entretanto tocar o cerne do problema. Não creio que esses desvios devam ser considerados como tais, ou seja, uma deturpação ou degenerescência do discurso científico, mas sim uma conseqüência necessária do seu próprio progresso. É nesse sentido que Lacan, no seu seminário 17, O avesso da psicanálise, frisa que no discurso científico o saber sofre um imperativo que faz com que ele avance sempre, o que impele o sujeito na direção de saber sempre mais, sem se deter em nenhum obstáculo, e sem tampouco refletir sobre as conseqüências desse avanço. ?A ciência não tem nenhuma espécie de idéia do que ela faz?, diz ainda Lacan numa entrevista de 29 out. 1974.

À medida que é próprio do discurso científico promover o constante avanço do saber e desconsiderar toda e qualquer barreira, esse movimento fatalmente o leva a colidir com posições que lhe interpõem barreiras fundadas na ética. Não que o discurso científico seja aético; todavia, pelo menos em sua fase atual, ele constrói uma ética própria, bastante diversa daquela preconizada por outros setores da sociedade, e que alguns preferem denominar de ética do real. Esta ética visaria um domínio cada vez maior do real, e, dessa forma, não entraria em conflito com o imperativo do avanço do saber, mas, ao contrário, o sustentaria.

Do ponto de vista de tal ética, a eugenia, por exemplo, seria perfeitamente aceitável e coerente com os seus princípios, uma vez que visaria uma melhoria da espécie; de um ponto de vista que privilegia o real da biologia, não haveria por que não buscar o aperfeiçoamento do organismo. Essa prática só é reprovável para aqueles que, cientistas ou não, se pautam por uma ética que não se fundamenta no real da biologia, mas sim nos valores provenientes de outros campos, por exemplo, daqueles oriundos da tradição.

Do mesmo modo, se compreendemos o nosso psiquismo como a somatória de fatores bioquímicos, e toda angústia, todo sofrimento psíquico, como um desequilíbrio desses fatores, é perfeitamente coerente prescrever os psicofármacos como a solução universal para esse tipo de sofrimento.

Disse anteriormente que uma ética que não se fundamentasse no real seria procedente de um registro estrangeiro. É o caso de nomeá-lo: o simbólico. A relação da ciência com esse registro parece-me complexa e problemática. Se, por um lado, no caso da matemática (e da lógica, em outro campo), poderíamos falar de uma hiper-simbolização do real, em contrapartida, para a biologia, por exemplo, parece haver a busca de um contato direto com o real, sem a mediação do simbólico e do imaginário. Haveria algo semelhante a um voto de prescindir da linguagem, almejando alcançar uma linguagem do próprio real, escrita no livro da natureza, o qual tratar-se-ia apenas de saber lê-lo. Falar de sujeito, nesse contexto, é completamente inútil. O que está em questão doravante não é um sujeito, mas sim as alterações no real do organismo a nível celular ou molecular.

Essas concepções, por sua vez, não deixam de ter influência na cultura de nossa época. Cabe lembrar aqui a célebre afirmação feita por Lacan na mesma entrevista antes citada: questionado acerca do ?triunfo da psicanálise?, ele respondeu ser a religião aquela que triunfará; a psicanálise, por sua vez, sobreviverá ou não.

Por que a religião triunfará? E o que isso tem a ver com o avanço da ciência? Na análise de Lacan, o avanço da ciência não produz nenhum sentido, ou seja, suas conseqüências materiais, embora tangíveis, não são assimiláveis pelo sujeito (lembremos que, para Lacan, o sentido situa-se na junção do imaginário com o simbólico). O sujeito tentará preencher esse vazio de sentido por outras vias diversas da ciência, sendo a religião uma via privilegiada para isso, dado o seu know-how em fornecer sentido para a existência humana. O crescimento do misticismo e dos fundamentalismos cristão e muçulmano testemunham essa tentativa demasiado humana de preencher o vazio de sentido de um mundo dominado pelo progresso tecnológico, para a maioria das pessoas, um mundo simplesmente incompreensível e assustador.

Neste ponto, gostaria de abordar uma questão interessante, que parece ressaltar uma aparente proximidade entre o discurso científico e o discurso psicanalítico. Trata-se da situação do sujeito frente à determinação da sua vida, sua conduta, suas emoções, por causas que são alheias à sua vontade. Para a ciência, o ser humano é produto de fatores (genéticos, por exemplo) que determinam os mais elementares componentes da sua conduta; que determinam, por exemplo, sua sexualidade, sua propensão para o uso de certas substâncias tóxicas ou para desenvolver certas síndromes psicopatológicas. O sujeito, para a psicanálise, não é menos assujeitado à determinação de fatores alheios à sua vontade consciente. No caso, estaríamos falando de uma determinação inconsciente para suas ações e escolhas, mesmo as mais íntimas, ou seja, justamente aquelas em que cada um se reconhece.

Que diferença haveria entre a determinação (genética, biológica) sofrida pelo sujeito no discurso científico e a determinação inconsciente no discurso analítico? A diferença crucial é que, no primeiro caso, a determinação exclui a responsabilidade do sujeito. Quando se afirma que alguém é toxicômano ou alcoólatra, homossexual ou heterossexual, deprimido ou hiperativo devido ao seu código genético, tal afirmação pressupõe que ele é isento de responsabilidade sobre essas condutas, que ele é tão responsável por elas quanto o é pela cor de seus olhos.

Em contrapartida, para a psicanálise, a determinação inconsciente não exime o sujeito da responsabilidade pelos seus atos, pelas suas escolhas. Esse é o paradoxo que nos desafia no dia-a-dia da nossa clínica, onde os analisantes queixam-se de um sofrimento cujas origens freqüentemente são anteriores ao seu próprio nascimento, mas que devem assumir em seu próprio nome se quiserem produzir alguma modificação no seu sintoma.

A assunção da responsabilidade pelos seus atos está presente também no herói da tragédia de Sófocles. Movido por forças alheias à sua vontade, Édipo é levado ao parricídio e ao incesto. Contudo, não se limita a lamentar seu destino (que já fora previsto pelo oráculo antes mesmo do seu nascimento) e a maldizer os deuses; ele reconhece a si próprio como um criminoso, alguém que infringiu as leis da Cidade, mesmo sabendo que foi levado a praticar seus crimes como marionete dos deuses. Nesse sentido, Édipo é considerado por alguns pensadores como o primeiro herói moderno avant la lettre, já que ele assume a responsabilidade pelos seus atos em lugar de creditá-los inteiramente ao destino. É precisamente esse herói que Freud escolhe para nomear seu famoso complexo estruturador da sexualidade do ser falante.

Se até aqui falamos do sujeito no discurso científico e no discurso analítico como aquele que sofre determinações que o privam ou não da sua responsabilidade, vamos falar agora do sujeito num outro discurso como recusando toda e qualquer determinação. No início dos anos 70, Lacan preocupou-se em traçar a fórmula de um novo discurso, além dos quatro que já havia sistematizado, na tentativa de dar conta das relações de dominação e das peculiaridades do mestre contemporâneo. A este deu o nome de discurso do capitalista. Nele, o sujeito ocupa a posição mestra, ou seja, o lugar de agente, algo que só acontecia antes no discurso da histérica.

A diferença, entretanto, é radical. Enquanto no discurso da histérica o sujeito é aquele que aborda o outro ? no caso, o mestre ? a partir da sua falta, do seu sintoma, visando seduzi-lo ou intrigá-lo com sua demanda, e com isso fazê-lo trabalhar para tentar decifrar esse sintoma, no discurso do capitalista o sujeito não se dirige ao outro a partir de nenhuma falta. Ao contrário, ele exerce seu domínio sobre o outro (o empregado) exclusivamente a partir da sua vontade de fazê-lo trabalhar para si. A sua voz de comando é produzida a partir de um ato volitivo, que parece negar a própria divisão subjetiva, não deixando lugar para o inconsciente.
Esse sujeito possui como principal característica a autonomia: é o self-made man, literalmente, o homem que fez a si mesmo. Esta expressão, que sintetiza a noção de autonomia do sujeito capitalista em relação às antigas determinações, da tradição, por exemplo, deve ser lida também como autonomia em relação à própria linhagem, à cadeia de gerações e, portanto, à paternidade simbólica. Sim, pois o self-made man não descende de ninguém: tendo gerado a si mesmo, ele é o seu próprio pai. É interessante observar como essa pretensa autonomia contradiz a determinação genética proclamada pelo discurso científico, de cujo avanço entretanto ela colhe os frutos.

Além disso, não deixa de ser curioso constatar que essa autonomia é reivindicada também pelos movimentos que se pretendem críticos em relação ao discurso do capitalista: é o caso, por exemplo, das chamadas minorias, nas quais a noção de ?opção? (como em ?opção sexual?, por exemplo) é uma noção recorrente.

É preciso ressaltar ainda uma importante característica desse discurso, que Lacan resumiu na sua fórmula. Trata-se do acesso do sujeito ao objeto. No discurso do mestre, característico do laço feudal, anterior portanto à mais-valia, esse acesso não era garantido; o mestre, é claro, podia dispor do produto do trabalho do seu servo, mais ainda não havia aprendido a acumulá-lo. Lacan vai dizer que foi Marx, com sua teorização da mais-valia, que forneceu ao capitalismo a fórmula da sua longevidade, o que é uma observação bastante instigante e provocadora, pois é como se ele dissesse que foi Marx quem criou o capitalismo après-coup (só-depois).

Contudo, o que nos interessa aqui são as conseqüências para o sujeito desse acesso ao objeto. Roland Chemama até mesmo o denomina ?interpretação selvagem?, uma vez que o sujeito acederia ao objeto sem nenhum trabalho. Ele vai concluir que isso retorna sobre o sujeito como uma forma de domínio pelo objeto: o sujeito, no discurso do capitalista, é na verdade dominado pelo objeto que este discurso produz. Seria esse o limite oculto à sua autonomia?

Nesse ponto, cabe a questão: Esse sujeito seria analisável? A pergunta pode parecer despropositada, uma vez que a nossa prática é exercida em sociedades regidas pelo laço social capitalista. Mas, antes de nos determos nesse paradoxo, lembremos que Lacan já comentou em algum lugar que os ?verdadeiramente ricos? seriam mais difíceis de se analisar. Note-se que, para ele, os ?verdadeiramente ricos? não seriam os possuidores de grandes fortunas, mas aqueles que ganham a partir do trabalho do outro (do empregado); ou seja, aquele que se coloca no lugar de sujeito no discurso do capitalista.

E por que esses sujeitos seriam mais dificilmente analisáveis? Para responder a esta pergunta é preciso compreender a argumentação de Lacan, que, na sua formulação do discurso psicanalítico, situa o sujeito (o analisante) no lugar daquele que trabalha. Apesar dessa formulação ser posterior em seu ensino, desde o início dos anos 50, no seu Discurso de Roma, ele já definia a associação livre como um ?trabalho forçado? (como o trabalho que exerciam os prisioneiros nas penitenciárias). Não é de se estranhar, portanto, que aquele que se coloca subjetivamente na posição de quem põe o outro a trabalhar para si, tenha uma maior dificuldade em situar-se, num outro discurso, no lugar do trabalhador.

O que não quer dizer, obviamente, que todo patrão é inanalisável. É claro que o sujeito, mesmo no laço social capitalista, sofre os efeitos imaginários da castração, por exemplo. Mesmo que os objetos de consumo e o próprio capital se apresentem como sucedâneos do objeto a, estes não conseguem tapar a castração. É num momento de crise que o sujeito em questão pode vir a colocar-se na posição histérica, por exemplo, e demandar uma análise. Em nossos dias, entretanto, é nesse momento que a ciência (retornamos a ela) intervém, fornecendo o objeto (a pílula, o medicamento) que possibilita o alívio do sofrimento sintomático e impede o sujeito de ir mais adiante no questionamento da sua relação com o objeto que causa o seu desejo.

Estarão certos então aqueles que dizem estar a psicanálise ultrapassada e que prevêem seu fim próximo? Ultimamente temos escutado esta previsão da própria boca de muitos analistas, até mais do que da dos inimigos da psicanálise, a ponto de nos perguntarmos se em alguns deles (não todos) tratar-se-ia mais de um voto do que de um receio. Contudo, somos forçados a admitir que, se é um fato que o discurso psicanalítico não pôde surgir entre os assírios e os babilônios, por exemplo, porque os laços sociais de então não haviam ainda produzido um sujeito que pudesse suportá-lo, podemos admitir também a hipótese de que, no futuro, os laços sociais existentes tornem impossível a permanência desse discurso.

Preferimos imaginar, entretanto, uma terceira hipótese, além do triunfo da religião previsto por Lacan e do sujeito hodierno oscilando entre a ilusão de uma autonomia absoluta e uma determinação biológica total; a hipótese de que o avanço da ciência venha a produzir simplesmente uma exacerbação do sintoma histérico, como, aliás, vem produzindo há séculos.

De qualquer modo, a nossa preocupação deve ser menos com a simples sobrevivência da nossa prática do que com a sua obsolescência devido a soluções perversas. O nosso compromisso ético continua sendo o de possibilitar ao sujeito defrontar-se com a sua responsabilidade em relação ao seu sintoma e com as conseqüências da sua relação com o objeto que causa o seu desejo.
Referências bibliográficas

PÍLULAS ou psicanálise? Folha de S. Paulo, 10 set. 1995. Caderno 1, Editorial, p. 2.
CHEMAMA, Roland. Um sujet pour l?objet. In: Le Discours Psychanalytique, Paris, n. 1, fev. 1989. Edição de J. Clims e Association Freudienne.
DICK, Philip. K. The simulacra. Londres: Methuen, 1987.
LACAN, Jacques. Conference de presse. In Documents de travail ? Interventions de J. Lacan extraites des Lettres de l?Ecole. Paris: Editions de l?Association Freudienne Internationale, s/d. Edição sem fins comerciais.
_______________. Le Séminaire, livre XVII, L?envers de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1991[Ed. bras.: O Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.]
_______________. O Seminário, livro 18, De um discurso que não seria do semblante. Recife: C.E.F., 1996. Edição sem fins comerciais.
_______________. Écrits. Paris: Seuil, 1966. [Ed. bras.: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.]
_______________. Du discours psychanalytique. In Bulletin de l?Association Freudienne. Paris: Editions de l?Association Freudienne Internationale, dez. 1984.
MELMAN, Charles. Pourqoui la TVA n?est pas applicable à la séance de psychanalyse? In: Le Discours Psychanalytique, op. cit. [Ed. bras.: Por que o ICMS não é aplicável à sessão de psicanálise. In GOLDENBERG, Ricardo. Goza! Capitalismo, globalização, psicanálise. Salvador: Ágalma, 1997.]
TEIXEIRA, Marcus do Rio. O objeto roubado. In Seminários ? Coletânea de textos do Seminário de verão. Recife: Centro de Estudos Freudianos, 1993. Neste volume.

Alcance e Limites da Psicanálise no Início do Século Read More »

Azul é a cor mais quente

Em “Azul é a cor mais quente” (Abdellatif Kechiche, 2013), Adèle (Adèle Exarchopoulos) é uma adolescente que vive num mundo pequeno, dividindo seu tempo entre as tarefas escolares e a diversão com a galera. Apesar dessa limitação, ela possui uma sensibilidade muito aguçada pela literatura e uma intuição de que o mundo é muito maior do que os papinhos das amigas. Essas características não são exatamente úteis para melhorar a sua relação com o seu meio, sobretudo no que diz respeito ao sexo: ela enjoa rapidamente de um rapaz com quem iniciou um casinho – mais por insistência das amigas do que por um interesse autêntico – e que é nitidamente inferior a ela na visão de mundo.
As coisas mudam quando ela conhece Emma, uma mulher mais velha e mais experiente do que ela e muito convicta na sua opção heterossexual (na definição de Lacan, heterossexual é todo sujeito que ama as mulheres).

A relação das duas é um ótimo exemplo do que Lacan afirma no Seminário 20, Mais, ainda: que as posições masculina e feminina na sexuação não têm necessariamente uma relação com a anatomia. Adèle se situa como objeto causa do desejo para uma Emma que se ocupa da sua sedução de acordo com o cânone masculino. Como frisa Charles Melman, a dimensão da alteridade se instaura no casal, ainda que este seja constituído por seres de corpos semelhantes: Adèle cuida amorosamente do lar enquanto Emma se inquieta com a sua suposta insatisfação e quer que ela seja feliz (o que ela afirma tranquilamente já ser).
O diretor tem o mérito de retratar uma relação entre duas mulheres de forma não preconceituosa e tampouco militante: enquanto seres da linguagem, Adèle e Emma experimentam as dificuldades corriqueiras do laço conjugal entre um homem e uma mulher, que vão do cômico ao trágico. Quando a pulsional Adèle, que devora tudo “mesmo quando não tem fome”, mostra que o sexo para ela é algo tão natural quanto sair na balada, Emma, que busca constituir uma família, não acha isso nem um pouco engraçado.

Apesar do título, a fotografia explora as cores quentes e a textura da pele dos corpos filmados em close. Apesar de não sentirmos a lentidão do ritmo, algumas cenas são muito mais longas do que o padrão cinematográfico atual. Isso se nota, sobretudo, nas cenas de sexo, mas não somente: quando Adèle conversa, dança ou grita slogans numa passeata estudantil a cena se estende por vários minutos. Poderíamos pensar, a princípio, que esse procedimento tem uma intenção erótica: exibir o corpo da personagem que, como uma ninfeta nabokoviana, parece não se dar conta da sua sensualidade, perambulando no mundo com os lábios sempre entreabertos.

Porém, creio que há mais do que uma intenção erótica nessas cenas alongadas além do habitual. Nessa tentativa de igualar o tempo narrativo e o tempo narrado, o diretor parece deixar transparecer uma posição: a ideia de mostrar as coisas “como elas são”. Creio que essa pretensão naturalista pode ser confirmada na forma como a própria história é narrada, evitando fazer um julgamento. Ora, ocorre que as coisas nunca podem ser mostradas “como elas são”, num filme ou em outra obra de arte. Acerca desse tema já se gastou muita tinta e papel (ou tela de computador). Talvez por isso, ao final do filme, ficamos com uma sensação de estranheza, como se tivéssemos acabado de assistir um documentário, e não uma obra de ficção.

Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, editor de Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012), entre outros.

Azul é a cor mais quente Read More »

UM CORTE DE PAPEL – REFLEXÕES SOBRE A GRANDE BELEZA

Alguns criticam o diretor Paolo Sorrentino por sua suposta imitação de Fellini. Em A Grande Beleza (2013) essa tentativa de reproduzir o estilo do mestre se evidenciaria sobretudo na escolha das personagens exóticas – a santa, a editora anã… – e na celebração de Roma. Há nessa crítica um tanto de verdade e outro tanto de exagero. É claro que Sorrentino presta uma homenagem sincera a Fellini e tenta emulá-lo em alguns momentos, mas seu filme não se reduz a isso, mesmo porque seu olhar vem de outra época e jamais poderia reproduzir o olhar de um diretor de outra geração, com referências distintas. Sua Roma não pode ser jamais a Roma de Fellini, ainda que o cenário seja semelhante. Ainda assim – ou justamente por isso – ele consegue recortar na cidade recantos que surpreendem e encantam, como fazia o diretor de Roma. O tema do voyeur, do olhar de alguém que espreita sem ser visto é recorrente em várias cenas.

Jep Gambardella – interpretado pelo excelente Toni Servillo –, um jornalista que acaba de completar 65 anos, escritor de um único livro, apresenta-se como um homem dotado de sensibilidade. Talvez seja essa sensibilidade que o condena ao tédio, essa sensação que Lacan descreveu tão bem como o desejo de outra coisa: “Uma ocupação só começa a se tornar séria quando aquilo que a constitui, isto é, em geral, a regularidade, torna-se perfeitamente entediante.” (Seminário 5, As Formações do Inconsciente, p. 184) A rotina, para ele, é o que outros chamariam de diversão. Situado no centro da mundanidade, cercado pelos artistas, pelos ricos e descolados e pelos não tão ricos, ele percebe ao seu redor a marca da mediocridade. As cenas das festas intermináveis e da entrevista com a performer ilustram de forma exemplar essa mediocridade. Porém essa percepção não faz dele um histérico, tampouco um cínico. Não é um histérico porque ao apontar a mediocridade, não o faz desde uma posição exterior, como uma bela alma, mas se inclui na sua crítica. Não é um cínico porque ao contrário deste, não se compraz com a desordem do mundo para concluir que “as coisas não têm jeito” e justificar, desse modo, a sua posição.

Em meio a essa mediocridade, ele busca a “Grande Beleza”, mas afirma nunca tê-la encontrado. É evidente que essa é a grande ironia do diretor, pois a beleza está todo o tempo em volta do personagem, aonde quer que ele vá: nos lugares, nas obras de arte, nos corpos, na paisagem, até mesmo naquilo que ele identifica como mediocridade. Jep, porém, não é capaz de reconhecer a beleza, pois está imerso nela. Como os peixinhos da piada, ele não sabe o que é “água”. Falta-lhe o distanciamento necessário para perceber a beleza que busca e a falta desse distanciamento o impede de escrever o seu segundo romance – o que constitui o seu sintoma.

A beleza não é considerada um tema nobre hoje em dia: colocada sob suspeita de superficialidade, desprezada pela arte contemporânea, que se ocupa do feio e do repelente, acusada de reproduzir a ideologia da classe dominante, ela não possui dignidade suficiente para ser eleita como uma meta. Volta e meia algum militante de causas obscuras posta nas redes sociais um protesto repleto de ódio contra a “ditadura da beleza”, levando-nos a supor que quando admiramos Bach ou Bündchen praticamos a servidão voluntária ao capitalismo. Já Freud, em O Mal-Estar na Civilização, considera a beleza como uma das formas de combater o sofrimento. Ele se refere ao seu caráter “suavemente embriagante”, porém considera que a beleza fornece pouca proteção contra o sofrimento e conclui que a psicanálise não tem muito a dizer sobre ela. Lacan retoma esse comentário de Freud, mas em outra linha: para ele, a beleza é um engodo, uma última barreira que o sujeito ergue antes da pulsão de morte. Daí para os seus seguidores falarem mal da beleza é um passo (para trás, como acontece quando se segue sem pensar).

Na sua jornada noctívaga Jep atravessa as festas, as conversas, as relações mantendo sempre um ar blasé em relação a tudo, até mesmo em relação à morte. A única exceção capaz de abalá-lo é a recordação dessa mulher de quem pouco sabemos, a não ser que foi um amor da juventude. Na cena que representa a sua lembrança, ela se desvela e se recobre suavemente à luz da lua que se alterna com a sombra, replicando o seu gesto. Lacan apreciava muito a descrição do falo enquanto recoberto por um véu, imagem que ele foi buscar nos ritos iniciáticos da Antiguidade, e que ilustra a ideia do significante do desejo que não se pode acessar diretamente. Para Jep essa imagem remete à ideia do significante organizador, do Um que confere valor ao objeto e dá sentido à vida.

O filme de Sorentino provoca em nós essa sensação de suave embriaguez a que se refere Freud. Sua presença na atualidade nos faz pensar numa referência nostálgica à defesa estética contra o sofrimento mencionada em O Mal-Estar na Civilização. Mas ele não se limita a isso: ao mesmo tempo ele nos lembra o triunfo da mediocridade – soberana na mídia, onipresente nos laços sociais – do qual todos participamos. Nesse sentido, a sua própria beleza, suspeita de superficialidade, pode ser dolorosa como o corte da borda aguçada de uma folha de papel, que atinge apenas a superfície da pele, mas secciona as terminações dos nervos.

Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, editor de Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012).

UM CORTE DE PAPEL – REFLEXÕES SOBRE A GRANDE BELEZA Read More »

Carrinho de compras